quinta-feira, 29 de março de 2012

J. Rentes de Carvalho - O Faísca

Não era o mesmo homem. Por dentro, dizia ele às vezes, mostrando o peito, está tudo esburacado, e riam-se da mania
que ganhara de assobiar e açular, Fadista! Fadista!, como se o cão ainda andasse por ali.
Se perguntavam porque fazia aquilo, desculpava-se a rir, dizia que era o vinho.
- Não regulas! —e os engraçados apontavam a cabeça. Mas se ninguém ouvia, agora a caminho da ribeira onde as mulas iam pastar, até lhe falava, atirava pedras ao monte, espantando os pássaros, como se ele estivesse vivo, pronto a correr
- Fadista!
As mulas arrebitavam as orelhas, inquietas com aquela presença assinalada e que não sentiam. Que lhe chamassem tolo, pouco importava, e não era o vinho, tinha saudades dele como de gente. Nem mula, nem terra, criado de servir, o Marques pedira-lhe a casa para guardar as caixas do peixe:
Pieter Bruegel, O Velho, A Matança dos Inocentes (detalhe), c. 1566
- Só lá dormes! Também podes ficar aqui, há lugar bas­tante! - e arrumara um canto da estrebaria, fazia a cama na manjedoura. Mas o cão!... Deitava-se-lhe aos pés a noite inteira, estendia a mão à procura do focinho, como dantes, vinham-lhe lágrimas por aquele nada.
Parou a enrolar o cigarro e as mulas tinham-se distan­ciado, deixá-las ir, o bocado de trigo que mordicam não deita ninguém a perder. Raios partam! Não tenho lumes! Procurou nas calças e no colete, entalou depois o cigarro atrás da orelha, acelerando o passo, danado, a deitar a culpa a tudo, em horas assim o Fadista pagava as favas, mas bem se arrependia.
- Tendes lume?!
Por causa do barulho do correnteza pôs as mãos em concha e gritou outra vez, mas as lavadeiras não ouviam e desistiu. O Raposo plantara tantas armadilhas como pés de vinha, para chegar à água por aquele lado era preciso uma volta de légua.
As mulas estacaram à entrada da ponte e deitou a correr antes que se espantassem, a malhada pegava o medo às outras, se escapava cada um para seu lado era o cabo dos trabalhos. Atalhou. Ia rodear a vinha e o moinho velho, depressa as alcançava se não fosse o arame farpado do muro, o safado com certeza pensava que podia levar tudo para o outro mundo! Gastava dias a pôr visgo para que os pardais não comessem alguma uva!
Com o Fadista não precisava de correr, bastava um assobio. E nunca o tinha ensinado! Fosse o que fosse, ovelhas, burras, até a mula que por um nada começava aos coices, tomava conta como uma pessoa, ou ainda melhor!
A passo, para que não se espantassem, as duas mais velhas; a grande, essa, quando lhe dava a mosca ninguém a segurava, ainda estava na ponte, arrebitando as orelhas.
Parou, a fingir que a esquecia, um engodo, mas o estupor lia as manhas. Chamou-a. Nada. Atirou uma pedra e a mula se­guiu-a com os olhos, parecia um cachorro. Aquilo ia acabar em brincadeira, mas se se chegasse ela deitava a correr e havia de se fazer noite antes de lhe pôr a mão. E o taberneiro a resmun­gar se lhe enxergasse a barriga vazia. Mas de quem era a culpa? Não tinha cordas para todas, e estar a amarrar uma sem amarrar as outras!... Muita gente julga que os animais não têm entendimento! Olha como o macho do Peleiro lhe encheu as costas de ferradelas para se vingar das pancadas que levava!
- Mula!
Qual! Deu um relincho e atravessou a ribeira, ainda a viu aos pinotes, mas quando chegou ao outro lado já tinha desa­parecido.
O remédio era ir por ali abaixo, prometia-lhe um par de cinturadas para ensino. O cigarro com certeza caíra, porque não o encontrava, só depois é que voltou a lembrar-se que não tinha fósforos e, enraivecido, nem quis saber onde punha os pés, as botas encharcadas.
- Ai se te apanho!...

in: Trás-os-Montes e Alto Douro, Mosaico de Ciência e Cultura (2011)



J. Rentes de Carvalho, de ascendência transmontana, nasceu em Vila Nova de Gaia no ano de 1930. Frequentou o Liceu Alexandre Herculano no Porto e, mais tarde, os de Viana do Castelo e Vila Real. Cursou Românicas e Direito em Lisboa; viveu em diversas partes do Mundo, publicando artigos em jornais de vários países. Actualmente distribui a vida pela Holanda e pela a aldeia transmontana, Estevais (Mogadouro). Em 1956 passou a viver em Amesterdão, na Holanda. Licenciou-se na Universidade de Amesterdão com a tese sobre Raul Brandão, onde foi docente de Literatura Portuguesa. Tem vasta obra literária publicada. Entre outros citem-se os seguintes romances: Montedor (1968), Com os Holandeses (1972), O Rebate (1971), A Sétima Onda (1984), Ernestina (1998), A Amante Holandesa (2003) e A Coca (2011).


J. Rentes de Carvalho traduzido nos Países Baixos





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