segunda-feira, 26 de março de 2012

Fernando Chiotte - A Fotografia[1]


Ali estava António, especado, em frente ao aquário que divide a sala do pequeno apartamento mais ou menos a meio. Do lado da varanda, voltada para o Tejo e construída saliente sobre o beiral do telheiro do penúltimo andar, num arremedo de sala, uma zona de estar, arejada e quase aprazível, embora os dois pequenos sofás amarelo camelo que quase a enchem, estejam já bem estafados, de lado quase completamente riçados até ao casco de madeira de pinho pelo Bolinha, o gato rafeiro que sempre ali afiou gulosamente as unhas até Outubro do ano passado, altura em que se finou.
A um canto, em frente dos sofás, sobre uma mesa escura de pinho, um televisor que raramente funciona.
Lembrava-se do dia chuvoso e frio em que voltando da redacção do jornal e mesmo a chegar a casa da Luísa, tinha recolhido o Bolinha na rua, quando, ele, abandonado, pequenino e escanzelado, miava debaixo do motor ainda quente de um carro que aí devia ter estacionado não havia ainda muito tempo, como se implorasse protecção.
Revivia o olhar ternurento e espantado de Luísa quando ao abrir-lhe a porta o viu com aquele assustado gatinho de pelo cinzento malhado de branco, encharcado até aos ossinhos, anichado como um bicho-de-conta no calor dos seus braços.
Com um esgar de dor António parecia reviver o dia em que o encontrara morto num canto esconso da minúscula cozinha, como se para morrer, o Bolinha, tivesse decidido esconder-se e, sozinho, passar por esse momento atroz.
Entre o aquário e a porta de entrada, uma espécie de acanhada sala de refeições, de configuração trapezoidal, com uma velha mesa holandesa de abas encostada a uma das paredes, pejada de papéis e jornais já lidos, numa confrangedora desordem e três velhíssimas cadeiras de palhinha meia destruída também pelas garras do Bolinha e que Jean Claude comprara num armazém de ferro velho para os lados da Estrela.
Nas paredes, coladas com fita adesiva contra a caliça a querer soltar-se, algumas fotografias amarelecidas e uma outra, bem maior, também já meio desbotada, de António, da Luísa, do Jorge Ferrão, da Clarisse, do Alberto Barreto e de mais dois rapazolas de que António mal se recordava, feita na escadaria da faculdade de letras, numa tarde do Verão de mil novecentos e setenta, depois do fim da época de exames do final de curso.
Penduradas, quase coladas à porta da entrada, duas serigrafias de um pintor amigo, emolduradas modestamente, misturam-se com um enorme poster de Che Guevara.
António, cabeça encostada ao vidro do aquário, nervoso, com um angustiante confrangimento no peito a estrangulá-lo, quase a impedi-lo de respirar, apertava na mão esquerda a chave do apartamento e entre os dedos esguios da direita rodava inquieto a pequena caixa arredondada de cartão contendo a comida daqueles pequeninos peixes, semelhante a pequeníssimas partículas multicolores de mica.
Tinha voltado hoje, como todos os dias, desde que eles tinham partido para França.
Tinha-lhes prometido que viria alimentar aqueles seus pequeninos peixes tropicais de escamas coloridas de azul ultramarino, amarelo vivo e escarlate.
Aturdido, olhava através do vidro à procura da imagem de Luísa, tornada grande e distorcida pelas leis da óptica, trespassada pelo passear dos peixes num passar de vaivém quase virtual,
como num bailado sereno, quando ela os vinha ver com o seu olhar míope e António, enternecido, a olhava através do vidro do lado oposto.
Luísa falava com o Simão, com o Fraldinha e com o Filósofo e eles, beijando o vidro, pareciam compreendê-la abrindo felizes as suas caudas vaporosas e translúcidas numa fibrilhação de asa de borboleta ou cauda de pavão cortejando a fêmea.
Mas Luísa não estava mais ali. Não voltaria. Nunca mais. Nem o Jean Claude. Os olhos mareados como se os tivesse mergulhado no aquário. No peito uma dor profunda, lancinante.
Recordava o dia em que Luísa rompera com o Manuel, a resignação com que lhe aturara a ressaca e a esperança que alimentara de ver chegada a sua hora de talvez poder ser amado finalmente por aquela mulher que era todo o seu mundo.
Depois, fora de novo a rejeição e o desespero.
Mesmo assim, António continuara a amá-la ainda com paixão e ela, fingindo ignorar esse amor, fizera-lhe outra vez sentir que não poderia nunca ser mais do que a sua melhor amiga.
António, mesmo assim, continuara a devotar-lhe um afecto intenso e calado, sofrido.
Para Luísa, Jean Claude era o seu grande e definitivo amor.
Tinham-no conhecido naquela tarde de um sábado do fim de Junho de mil novecentos e setenta e quatro, no passeio fronteiriço à velha estação do Rossio, em plena alucinação revolucionária, a caminho de um comício na Praça do Comércio.
António revivia como numa sessão de cinema de reprise aqueles momentos em que Jean Claude, carregando ao ombro um complicado equipamento fotográfico e empunhando uma velha Hasselblad, travando-lhes o passo aparecera em frente a eles, acompanhado por uma jovem mulher de cabelos ruivos, cortados curtos, de andar arrapazado, com um autocolante vermelho bem legível especado na blusa azul que vestia, sobre a zona do seio esquerdo, anunciando-a como fazendo parte da imprensa, com ele a gesticular e a insistir em fazer-lhes algumas fotografias.
Logo a seguir recordava-se de o ouvir, como que a sibilar nuns ouis inspiro-soprados, a entrecortar o seu palavreado de um francês tipicamente parisiense e apontando a sua companheira, pedir para que lhe concedessem a ela uma entrevista de rua.
Depois de conseguir as primeiras fotografias, recapitulava como Jean Claude se apresentara de forma tão convincente como repórter fotográfico, acrescentando, que Marie Joseph –, assim se chamava a sua companheira - era jornalista de uma coluna política importante de uma revista francesa de esquerda.
Entre as várias fotografias que lhes fez, uma fora muito especial, com António a encostar a cabeça à de Luísa, e ela, de punho esquerdo erguido e cerrado e a mão direita a fazer um V de vitória entre o dedo indicador e o mediano. Jean Claude colou-se a eles e como que hipnotizado, não mais os largou.
Depois ele e Luísa apaixonaram-se e António, de novo viu ruir a sua esperança.
Jean Claude mandou a revista às urtigas e nem sequer devolveu os negativos.
Marie Joseph partiu sozinha.
Desde então estiveram sempre juntos e felizes naquele pequeno apartamento de um último andar na Lapa, onde Luísa sempre vivera desde que começara a trabalhar e por onde, sem pedir licença, entra a imagem grandiosa do Tejo.
Seis meses volvidos, e sem se saber porquê, sem dar a António uma explicação, mesmo que fosse lacónica ou até menos verdadeira, de um momento para o outro, Luísa e Jean Claude tinham decido partir para Paris, mentindo, no entanto, dizendo-lhe que lá passariam algum tempo, mas que voltariam em breve.
Tinham passado já mais de oito dias desde que tinham deixado Lisboa e deles nem um sinal!
António sentia o arrepio do pressentimento forte de que pelo menos Luísa não voltaria mais e sabia bem o sofrimento que a sua ausência física lhe provocaria. Depois voltava um assomo de esperança vaga e perguntava-se:
- E o apartamento? O que faria? Talvez fosse verdade que Luísa voltaria em breve! Que outra explicação para aquela partida sem Luísa lhe deixar a mais breve indicação do que fazer com a casa e toda aquela tralha.
Jean Claude poderia ficar! Fora para o seu país. Que ficasse! Era-lhe indiferente! Mas Luísa! Amava-a ainda tão apaixonadamente, mesmo sentindo a dor imensa de ser sempre um rejeitado. Se ao menos lhe pudesse dizer que iria cumprir o prometido, que não abandonaria os seus pequeninos peixes tropicais!
E a angústia de novo voltava: O apartamento? O que faria com ele?
Absorto, indiferente a tudo, muito abatido, António, deixando o corpo afundar-se pesadamente num dos velhos sofás amarelos, experimentava a sensação dolorosa que o mundo lhe desabava sobre os ombros e sentia que só lhe restavam: o Simão, o Fraldinha, o filósofo - eles precisam dele e das pequenitas escamas como mica que flutuavam à superfície e que hoje, como desde o dia em que eles partiram, estáticos, como se a morte os tivesse atingido, olhando António, fixamente, bocas coladas ao vidro grosso do aquário, parecia terem resolvido não comer, talvez adivinhando o abandono que sobre todos se abatera -, e aquela fotografia que o Jean Claude lhes fizera naquela tarde de Junho de 1974 e que desde aí ciosamente guardava na carteira, com a Luísa, linda de morrer, o olhar brilhando de esperança na consolidação de uma liberdade tão dolorosamente reconquistada e um sorriso de felicidade a fazer o V da vitória, que se desvaneceria no torpor do poder que embriaga o homem político.
 

Lisboa, Maio de 2003

Fernando Chiotte

in: Trás-os.Montes e Alto Douro, Mosaico de Ciência e Cultura (2001)

O Autor
Fernando Chiotte Tavares, nasceu em Brragança a 11 de Novembro de 1936. Licenciou-se em Medicina na Faculdade de Lisboa. É especialista em Oftalmologia, tem uma Pós-graduação em Laserterapia oftalmológica. Foi assistente no Hospital Universitário de Gent, Bélgica. Foi Chefe de Serviço de Oftalmologia no Hospital de Santa Maria. Sócio da SOPEAM. O seu primeiro romance foi publicado em Março de 2000, O Factor do Circulo, e ganhou o Prémio de Revelação Ficção e Ensaio 1999 da SOPEAM. O seu segundo romance foi Cova de Lobo (2001). Recebeu uma Menção Honrosa da SOPEAM com o romance Soltam-se as Amarras (2003). Em 2008 publica Gostaria de Morrer Naquela Noite.





[1] Conto, da série contos da revista da Ordem dos Médicos Ano 19 Nº35



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