Ali
estava António, especado, em frente ao aquário que divide a sala do pequeno
apartamento mais ou menos a meio. Do lado da varanda, voltada para o Tejo e
construída saliente sobre o beiral do telheiro do penúltimo andar, num arremedo
de sala, uma zona de estar, arejada e quase aprazível, embora os dois pequenos
sofás amarelo camelo que quase a enchem, estejam já bem estafados, de lado
quase completamente riçados até ao casco de madeira de pinho pelo Bolinha, o
gato rafeiro que sempre ali afiou gulosamente as unhas até Outubro do ano
passado, altura em que se finou.
A um
canto, em frente dos sofás, sobre uma mesa escura de pinho, um televisor que
raramente funciona.
Lembrava-se
do dia chuvoso e frio em que voltando da redacção do jornal e mesmo a chegar a casa
da Luísa, tinha recolhido o Bolinha na rua, quando, ele, abandonado, pequenino
e escanzelado, miava debaixo do motor ainda quente de um carro que aí devia ter
estacionado não havia ainda muito tempo, como se implorasse protecção.
Revivia
o olhar ternurento e espantado de Luísa quando ao abrir-lhe a porta o viu com
aquele assustado gatinho de pelo cinzento malhado de branco, encharcado até aos
ossinhos, anichado como um bicho-de-conta no calor dos seus braços.
Com
um esgar de dor António parecia reviver o dia em que o encontrara morto num
canto esconso da minúscula cozinha, como se para morrer, o Bolinha, tivesse
decidido esconder-se e, sozinho, passar por esse momento atroz.
Entre
o aquário e a porta de entrada, uma espécie de acanhada sala de refeições, de
configuração trapezoidal, com uma velha mesa holandesa de abas encostada a uma
das paredes, pejada de papéis e jornais já lidos, numa confrangedora desordem e
três velhíssimas cadeiras de palhinha meia destruída também pelas garras do
Bolinha e que Jean Claude comprara num armazém de ferro velho para os lados da
Estrela.
Nas
paredes, coladas com fita adesiva contra a caliça a querer soltar-se, algumas
fotografias amarelecidas e uma outra, bem maior, também já meio desbotada, de
António, da Luísa, do Jorge Ferrão, da Clarisse, do Alberto Barreto e de mais
dois rapazolas de que António mal se recordava, feita na escadaria da faculdade
de letras, numa tarde do Verão de mil novecentos e setenta, depois do fim da
época de exames do final de curso.
Penduradas,
quase coladas à porta da entrada, duas serigrafias de um pintor amigo,
emolduradas modestamente, misturam-se com um enorme poster de Che Guevara.
António,
cabeça encostada ao vidro do aquário, nervoso, com um angustiante
confrangimento no peito a estrangulá-lo, quase a impedi-lo de respirar,
apertava na mão esquerda a chave do apartamento e entre os dedos esguios da
direita rodava inquieto a pequena caixa arredondada de cartão contendo a comida
daqueles pequeninos peixes, semelhante a pequeníssimas partículas multicolores
de mica.
Tinha
voltado hoje, como todos os dias, desde que eles tinham partido para França.
Tinha-lhes
prometido que viria alimentar aqueles seus pequeninos peixes tropicais de
escamas coloridas de azul ultramarino, amarelo vivo e escarlate.
Aturdido, olhava através do
vidro à procura da imagem de Luísa, tornada grande e distorcida pelas leis da
óptica, trespassada pelo passear dos peixes num passar de vaivém quase virtual,
como num bailado sereno,
quando ela os vinha ver com o seu olhar míope e António, enternecido, a olhava
através do vidro do lado oposto.
Luísa falava com o Simão,
com o Fraldinha e com o Filósofo e eles, beijando o vidro, pareciam
compreendê-la abrindo felizes as suas caudas vaporosas e translúcidas numa
fibrilhação de asa de borboleta ou cauda de pavão cortejando a fêmea.
Mas Luísa não estava mais
ali. Não voltaria. Nunca mais. Nem o Jean Claude. Os olhos mareados como se os
tivesse mergulhado no aquário. No peito uma dor profunda, lancinante.
Recordava o dia em que Luísa rompera com o
Manuel, a resignação com que lhe aturara a ressaca e a esperança que alimentara
de ver chegada a sua hora de talvez poder ser amado finalmente por aquela
mulher que era todo o seu mundo.
Depois, fora de novo a
rejeição e o desespero.
Mesmo assim, António
continuara a amá-la ainda com paixão e ela, fingindo ignorar esse amor,
fizera-lhe outra vez sentir que não poderia nunca ser mais do que a sua melhor
amiga.
António, mesmo assim,
continuara a devotar-lhe um afecto intenso e calado, sofrido.
Para Luísa, Jean Claude era
o seu grande e definitivo amor.
Tinham-no conhecido naquela
tarde de um sábado do fim de Junho de mil novecentos e setenta e quatro, no
passeio fronteiriço à velha estação do Rossio, em plena alucinação
revolucionária, a caminho de um comício na Praça do Comércio.
António revivia como numa
sessão de cinema de reprise aqueles momentos em que Jean Claude ,
carregando ao ombro um complicado equipamento fotográfico e empunhando uma
velha Hasselblad, travando-lhes o passo aparecera em frente a eles, acompanhado
por uma jovem mulher de cabelos ruivos, cortados curtos, de andar arrapazado,
com um autocolante vermelho bem legível especado na blusa azul que vestia,
sobre a zona do seio esquerdo, anunciando-a como fazendo parte da imprensa, com
ele a gesticular e a insistir em fazer-lhes algumas fotografias.
Logo a seguir recordava-se
de o ouvir, como que a sibilar nuns ouis inspiro-soprados, a entrecortar o seu
palavreado de um francês tipicamente parisiense e apontando a sua companheira,
pedir para que lhe concedessem a ela uma entrevista de rua.
Depois de conseguir as
primeiras fotografias, recapitulava como Jean Claude se apresentara de forma
tão convincente como repórter fotográfico, acrescentando, que Marie Joseph –,
assim se chamava a sua companheira - era jornalista de uma coluna política
importante de uma revista francesa de esquerda.
Entre as várias fotografias
que lhes fez, uma fora muito especial, com António a encostar a cabeça à de
Luísa, e ela, de punho esquerdo erguido e cerrado e a mão direita a fazer um V
de vitória entre o dedo indicador e o mediano. Jean Claude colou-se a eles e
como que hipnotizado, não mais os largou.
Depois ele e Luísa
apaixonaram-se e António, de novo viu ruir a sua esperança.
Jean Claude mandou a revista
às urtigas e nem sequer devolveu os negativos.
Marie Joseph partiu sozinha.
Desde então estiveram sempre
juntos e felizes naquele pequeno apartamento de um último andar na Lapa, onde
Luísa sempre vivera desde que começara a trabalhar e por onde, sem pedir
licença, entra a imagem grandiosa do Tejo.
Seis meses volvidos, e sem
se saber porquê, sem dar a António uma explicação, mesmo que fosse lacónica ou
até menos verdadeira, de um momento para o outro, Luísa e Jean Claude tinham
decido partir para Paris, mentindo, no entanto, dizendo-lhe que lá passariam
algum tempo, mas que voltariam em breve.
Tinham passado já mais de
oito dias desde que tinham deixado Lisboa e deles nem um sinal!
António sentia o arrepio do
pressentimento forte de que pelo menos Luísa não voltaria mais e sabia bem o
sofrimento que a sua ausência física lhe provocaria. Depois voltava um assomo
de esperança vaga e perguntava-se:
- E o apartamento? O que
faria? Talvez fosse verdade que Luísa voltaria em breve! Que outra explicação para
aquela partida sem Luísa lhe deixar a mais breve indicação do que fazer com a
casa e toda aquela tralha.
Jean Claude poderia ficar!
Fora para o seu país. Que ficasse! Era-lhe indiferente! Mas Luísa! Amava-a
ainda tão apaixonadamente, mesmo sentindo a dor imensa de ser sempre um
rejeitado. Se ao menos lhe pudesse dizer que iria cumprir o prometido, que não
abandonaria os seus pequeninos peixes tropicais!
E a angústia de novo
voltava: O apartamento? O que faria com ele?
Absorto, indiferente a tudo,
muito abatido, António, deixando o corpo afundar-se pesadamente num dos velhos
sofás amarelos, experimentava a sensação dolorosa que o mundo lhe desabava
sobre os ombros e sentia que só lhe restavam: o Simão, o Fraldinha, o filósofo
- eles precisam dele e das pequenitas escamas como mica que flutuavam à
superfície e que hoje, como desde o dia em que eles partiram, estáticos, como
se a morte os tivesse atingido, olhando António, fixamente, bocas coladas ao
vidro grosso do aquário, parecia terem resolvido não comer, talvez adivinhando
o abandono que sobre todos se abatera -, e aquela fotografia que o Jean Claude
lhes fizera naquela tarde de Junho de 1974 e que desde aí ciosamente guardava
na carteira, com a Luísa, linda de morrer, o olhar brilhando de esperança na
consolidação de uma liberdade tão dolorosamente reconquistada e um sorriso de
felicidade a fazer o V da vitória, que se desvaneceria no torpor do poder que
embriaga o homem político.
Lisboa, Maio de
2003
Fernando Chiotte
in: Trás-os.Montes e Alto Douro, Mosaico de Ciência e Cultura (2001)
Fernando Chiotte Tavares, nasceu em Brragança a 11 de Novembro de
1936. Licenciou-se em Medicina na Faculdade de Lisboa. É especialista em
Oftalmologia, tem uma Pós-graduação em Laserterapia oftalmológica. Foi
assistente no Hospital Universitário de Gent, Bélgica. Foi Chefe de Serviço de
Oftalmologia no Hospital de Santa Maria. Sócio da SOPEAM. O seu primeiro
romance foi publicado em Março de 2000, O
Factor do Circulo, e ganhou o Prémio de Revelação Ficção e Ensaio 1999 da
SOPEAM. O seu segundo romance foi Cova de
Lobo (2001). Recebeu uma Menção Honrosa da SOPEAM com o romance Soltam-se as Amarras (2003). Em 2008
publica Gostaria de Morrer Naquela Noite.
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