Tejo é nome de rio e de cão. Neste caso,
era de cão. E que cão! Era um “castro laboreiro” de um amarelo velho, esbelto,
corpulento, brincalhão, amigo do dono, exímio guardador da casa de quem o
alimentava e lhe dava o carinho a que tinha direito. Uma beleza de cão.
Crescia a olhos vistos. Quem por ali
passava, até gostava de ouvir o diabo do cão a barafustar contra quem se
atrevesse a encostar-se ao muro da propriedade. Era só um aviso, claro, que,
andada escassa meia dúzia de metros para lá do que era seu, calava-se e
ficava-se com Deus.
O Tejo começou a engordar tanto, tanto,
que até dava pena vê-lo quase quadrado, no seu corpo anafado a parecer-se mais
com um leão marinho acabado de se banquetear com uma ou duas morsas ou com dois
ou três pares de bacalhau.
A comparação é tanto mais pertinente
quanto o canzarrão também começava a sofrer de reumatismo, e então, mais do que
andar, era um arrastar penoso as suas pernas, mais parecendo um daqueles
animais dos mares do Sul a arrastar-se na areia.
Para completar o quadro, e à medida que
a idade avançava, a doença cardíaca tornava-se cada dia mais evidente. E era
uma dor de alma vê-lo caminhar pela rua, na rédea solta que os patrões lhe
davam de vez em quando, a arfar, a arfar, com a língua de palmo e meio, que
esta é que é a expressão correcta, sim senhores, rua acima, rua abaixo, sempre
mais ou menos à mesma hora, talvez a das suas necessidades fisiológicas!
Foi numa dessas penosas passeatas que a
cena se passou. Atrás de um portão da rua, escondia-se uma cadela no período do
cio. Ah, rapaz! O Tejo que, além do mais, também queria fazer um gostinho ao
coiso, toca de raspar, raspar, raspar no dito portão, porque saltar o muro,
isso era coisa do outro mundo para ele anafado, tolhido e cardíaco. Valha-nos
Deus!
Eis senão quando, a cadela (uma senhora
cadela, de quase oitenta centímetros de altura) dá em saltar para a rua, que
sim senhor, ela também gostava daqueles namoricos.
O nosso Tejo, bem tentava saltar-lhe
para cima, mas é o saltas! Mais baixo, anafado, tolhido e cardíaco como era, só
o olfacto e as lambedelas na dita cuja daquela fêmea não o saciavam de todo. E
vai de tentar mais uma vez! Com tão pouca sorte que se estatelou ali ao
comprido, no passeio. Foi então que aquela senhora bicha, parecendo querer
inverter os papéis, o lambe, o cheira e se deita em cima dele. Para nada, já se
sabe.
E o Tejo teve que desistir de procriar,
seguindo, anafado, tolhido e cardíaco, o seu caminho, talvez a deitar contas à
vida, ou a preparar-se para a morte, que nunca mais alguém lhe voltou a pôr os
olhos em cima!
Bernardino Henriques
(Mirandela 2010)
in: Trás-os-Montes e Alto Douro, Mosaico de Ciência e Cultura (2011)
Bernardino
Henriques. Casado em Salselas (Macedo de Cavaleiros)
e residente em Mirandela, Bernardino Henriques é licenciado pela Católica de
Lisboa. Frequentou o Curso de Linguística Alemã na Universidade de Münster
(Alemanha). Trabalhou no Consulado-Geral de Portugal em Osnabrück (Alemanha).
Foi professor de Português em Vila Nova de Gaia, Lagos, Osnabrück (Alemanha),
Macedo de Cavaleiros, Bragança e Mirandela. Foi director da revista “Elo” (Vila
Nova de Gaia), do jornal “O Nosso Jornal” (Lagos), Chefe de Redacção do jornal
“Terra Quente” (Mirandela). Colaborou ainda em inúmeros jornais e revistas, com
destaque para “Peregrinação” (Revista dos Emigrantes Portugueses, sediada na
Suiça). Tem colaboração na obra A Diáspora em Letra Viva (Colectânea de
trabalhos artísticos dos Emigrantes, editada pela Revista “Peregrinação”,
Cacilhas, 1998). Colaborou com o conto “Uma Escolha Singular” na Antologia
Nacional de Contos Leiamos (Lisboa, 2006). É autor de várias obras literárias
como Egografias (Macedo de Cavaleiros, 1985), Painéis (Mirandela, 1992), O
Crime da Escanabada (Lisboa, 1999), Terra Íntima (Fóios, 2007), Poemas da Terra
(Mirandela, 2009) e do ensaio Miguel
Torga (quase) na primeira pessoa (Coimbra, 2007). Tem dado conferências e
cursos em diversos pontos do país, e é tradutor de mais de duas dezenas de títulos.
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