terça-feira, 27 de março de 2012

Bernardino Henriques - Tejo


Tejo é nome de rio e de cão. Neste caso, era de cão. E que cão! Era um “castro laboreiro” de um amarelo velho, esbelto, corpulento, brincalhão, amigo do dono, exímio guardador da casa de quem o alimentava e lhe dava o carinho a que tinha direito. Uma beleza de cão.
Crescia a olhos vistos. Quem por ali passava, até gostava de ouvir o diabo do cão a barafustar contra quem se atrevesse a encostar-se ao muro da propriedade. Era só um aviso, claro, que, andada escassa meia dúzia de metros para lá do que era seu, calava-se e ficava-se com Deus.
O Tejo começou a engordar tanto, tanto, que até dava pena vê-lo quase quadrado, no seu corpo anafado a parecer-se mais com um leão marinho acabado de se banquetear com uma ou duas morsas ou com dois ou três pares de bacalhau.
A comparação é tanto mais pertinente quanto o canzarrão também começava a sofrer de reumatismo, e então, mais do que andar, era um arrastar penoso as suas pernas, mais parecendo um daqueles animais dos mares do Sul a arrastar-se na areia.
Para completar o quadro, e à medida que a idade avançava, a doença cardíaca tornava-se cada dia mais evidente. E era uma dor de alma vê-lo caminhar pela rua, na rédea solta que os patrões lhe davam de vez em quando, a arfar, a arfar, com a língua de palmo e meio, que esta é que é a expressão correcta, sim senhores, rua acima, rua abaixo, sempre mais ou menos à mesma hora, talvez a das suas necessidades fisiológicas!
Foi numa dessas penosas passeatas que a cena se passou. Atrás de um portão da rua, escondia-se uma cadela no período do cio. Ah, rapaz! O Tejo que, além do mais, também queria fazer um gostinho ao coiso, toca de raspar, raspar, raspar no dito portão, porque saltar o muro, isso era coisa do outro mundo para ele anafado, tolhido e cardíaco. Valha-nos Deus!
Eis senão quando, a cadela (uma senhora cadela, de quase oitenta centímetros de altura) dá em saltar para a rua, que sim senhor, ela também gostava daqueles namoricos.
O nosso Tejo, bem tentava saltar-lhe para cima, mas é o saltas! Mais baixo, anafado, tolhido e cardíaco como era, só o olfacto e as lambedelas na dita cuja daquela fêmea não o saciavam de todo. E vai de tentar mais uma vez! Com tão pouca sorte que se estatelou ali ao comprido, no passeio. Foi então que aquela senhora bicha, parecendo querer inverter os papéis, o lambe, o cheira e se deita em cima dele. Para nada, já se sabe.
E o Tejo teve que desistir de procriar, seguindo, anafado, tolhido e cardíaco, o seu caminho, talvez a deitar contas à vida, ou a preparar-se para a morte, que nunca mais alguém lhe voltou a pôr os olhos em cima!



Bernardino Henriques

(Mirandela 2010)
in: Trás-os-Montes e Alto Douro, Mosaico de Ciência e Cultura (2011)

O Autor

  Bernardino Henriques. Casado em Salselas (Macedo de Cavaleiros) e residente em Mirandela, Bernardino Henriques é licenciado pela Católica de Lisboa. Frequentou o Curso de Linguística Alemã na Universidade de Münster (Alemanha). Trabalhou no Consulado-Geral de Portugal em Osnabrück (Alemanha). Foi professor de Português em Vila Nova de Gaia, Lagos, Osnabrück (Alemanha), Macedo de Cavaleiros, Bragança e Mirandela. Foi director da revista “Elo” (Vila Nova de Gaia), do jornal “O Nosso Jornal” (Lagos), Chefe de Redacção do jornal “Terra Quente” (Mirandela). Colaborou ainda em inúmeros jornais e revistas, com destaque para “Peregrinação” (Revista dos Emigrantes Portugueses, sediada na Suiça). Tem colaboração na obra A Diáspora em Letra Viva (Colectânea de trabalhos artísticos dos Emigrantes, editada pela Revista “Peregrinação”, Cacilhas, 1998). Colaborou com o conto “Uma Escolha Singular” na Antologia Nacional de Contos Leiamos (Lisboa, 2006). É autor de várias obras literárias como Egografias (Macedo de Cavaleiros, 1985), Painéis (Mirandela, 1992), O Crime da Escanabada (Lisboa, 1999), Terra Íntima (Fóios, 2007), Poemas da Terra (Mirandela, 2009) e do ensaio  Miguel Torga (quase) na primeira pessoa (Coimbra, 2007). Tem dado conferências e cursos em diversos pontos do país, e é tradutor de mais de duas dezenas de títulos.

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