quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Abilio Gomes - Barahona Fernandes – de Vinhais para o Mundo




Vinhais

Na comemoração do 725º aniversário do foral de Lagoaça, não pude deixar de corresponder ao amável convite que me foi dirigido para participar nesta colectânea, através de um modesto e despretensioso contributo. Como transmontano que sou e amante da sua terra, ocorreu-me evocar um transmontano ilustre que, não sendo lagoacense, bem nos representa a todos quantos nascemos para lá do Marão. Henrique João de Barahona Fernandes nasceu em 31 de Julho de 1907, numa casa da Rua Nova,  na mesma terra que vira nascer seu Pai, por expressa vontade deste. De facto, à época, o Capitão-de-fragata médico naval Dr. António Augusto Fernandes, vivendo com sua esposa em Lisboa, deslocou a sua residência apenas com este objectivo: que o seu filho fosse vinhaense, logo transmontano profundo. Imagino que para D. Branca Barahona Fernandes não deva ter sido fácil aceitar a decisão do marido, pois nessa altura as deslocações eram penosas e as assimetrias de assistência médica e outros confortos entre os centros e a periferia eram marcantes. Esperava ele assim, certamente, pagar um tributo à sua terra natal, mas também prolongar no filho o amor por ela. As evidências apontam para crer que, na construção do carácter do filho, esta deve ter sido uma  marca indelével. 

Vinhais
Tão importante como o amor de seu Pai por aquela terra transmontana. Genes e ambiente conjugaram-se de forma avassaladora para moldar a personalidade e a transmontanidade daquele que viria a ser um vulto da psiquiatria portuguesa e mundial. Os ares lavados do planalto, soprados das serras da Coroa e Nogueira, respirados a plenos pulmões, a profundidade dos horizontes  recortados pela linha dos seus montes, da Ciradêlha ao Cavalo Branco, o clima rigoroso e rude, a pureza dos seus regatos,  rios e ribeiros cantantes, a simplicidade das suas gentes, íntimamente  ligadas à natureza, devem ter exercido na personalidade de Barahona Fernandes uma influência estruturante. Não  será por isso indiferente a sua escolha de Galamares, em Sintra, para localização do seu retiro espiritual e de lazer. Aí reviveu certamente os ambientes paisagísticos, exteriores e interiores daquela que foi a “Sintra Transmontana” que lhe serviu de berço.  O filme “Evocação de Barahona Fernandes”, da autoria de José Barahona, dá-nos conta desta sua ligação à terra e ao cosmos, aliás confessada ao cineasta, seu neto, na idade de 7 anos. Aquilo que neste forum me parece mais interessante salientar, mais do que os feitos e obras da figura evocada, é a ligação à terra transmontana e aos valores sólidos que ela encerra, transportados e cultivados pelos seus filhos ilustres. A biografia de Barahona Fernandes é suficientemente rica para encher páginas e páginas, tal foi o alcance do seu contributo para a sociedade. Interessante será, mais do que essa enumeração, extrair aquilo que lhe é imanente. Como apaixonado pela filosofia que foi, esta ideia far-lhe-ia sentido. Embora me considere históricamente distante quanto baste para dele poder falar com objectividade, não posso deixar de referir as ligações, directas e indirectas, que com ele tive. O meu Pai foi seu contemporâneo e chegou a falar-me dele. Nesse contacto com as pessoas simples da terra, certamente assimilou os saberes, a ética  e o apego à terra-mãe. Na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, no ano de 1967 e seguintes, passei a conhecer pessoalmente o Professor Barahona Fernandes, que regia as cadeiras de Psicologia Médica  e Psiquiatria pelas quais passei. Tendo conhecido os seus assistentes, dos quais recordo em especial o Prof Simões da Fonseca, que me ensinou uma Psicologia moderna, interventiva e fascinante, tive ainda o privilégio de ter sido o próprio Barahona Fernandes o meu examinador no exame final de Psiquiatria. Privilégio e prazer não antecipados, pois ser examinado pelo Professor da Cadeira seria antes, para qualquer aluno normal da época, fonte de angústia ou mesmo pânico, mas nunca de euforia ou  prazer. 
Vinhais
Não esqueço a forma profunda e calorosa como “conversou” comigo, fazendo um exercício de um pedagogo maior, aproveitando o exame para dar mais uma aula, para mim a sua última. Para ele eu era um aluno como tantos outros, pois nessa altura ele desconhecia em absoluto que éramos conterrâneos. Essa informação não lhe chegou senão mais tarde, já médico feito, como adiante explicarei. O tema mais saliente do meu exame oral foi então o “síndrome de da Costa”, ou “do soldado”, em suma o “stress de combate”, levando-me a deduzir as respostas, com base na utilização racional dos conhecimentos de Psicologia, Psiquiatria e Fisiologia que adquiri durante o curso. Nunca mais esqueci essas respostas e essa lição.  Ainda que o contacto com este tema não tenha sido directo ou profundo durante as aulas, por não ser um clássico, consegui satisfazer o meu Mestre nas respostas que fui dando. Estou certo de que isso se deveu à sua atitude de pedagogo e mestre. Não encontro uma relação directa entre este facto e a minha ligação posterior à medicina castrense, mas acredito nalgum determinismo intangível que escapa à objectivação. É pelo menos estimulante acreditar e não vem daí nenhum mal ao mundo. Em todo o caso o tema não era alheio àquilo que foi um interesse particular de Barahona Fernandes, bem plasmado na sua tese de Doutoramento, que defendeu e publicou em 1938: “Patopsicologia e fisiopatologia das síndromes hipercinéticas”. No seu consultório da Av. da Liberdade em Lisboa, a meu pedido, recebeu um dia uma doente de meia idade de Vinhais, que a Família considerava um caso grave e altamente perturbador do ambiente familiar. Sendo eu conterrâneo e estudante na Faculdade de Medicina onde Barahona Fernandes era Professor, entenderam utilizar-me como medianeiro. Era considerada a etapa final de uma peregrinação por vários médicos, que sucessivamente tinham falhado no encontro de uma solução satisfatória para o problema. No final da consulta, o Professor disse-me que se tratava de “um caso clássico de histeria”. Nas relações que teve com grandes figuras contemporâneas da Medicina, nacionais e internacionais, nomeadamente no campo das Neurociências, Barahona Fernandes bebeu influências que marcaram as suas ideias académicas. No plano nacional colaborou com Egas Moniz, nos trabalhos da  sua investigação, mantendo com ele uma relação de amizade, herdada do seu Pai, que foi colega e amigo do Prémio Nobel da Medicina. No seu livro “Egas Moniz, pioneiro de descobrimentos médicos”, editado em 1983 (Biblioteca Breve, nº 70) e distinguida com o Prémio Abel Salazar de Ensaio da Associação Portuguesa de Escritores Médicos, Barahona Fernandes traça um retrato crítico do Homem , faz a análise das suas descobertas científicas e do seu sentido, detendo-se na reflexão sobre o entendimento de Egas Moniz acerca da investigação e da pedagogia.  Mais tarde colaboraria também com Sobral Cid, de quem foi assistente no Hospital Miguel Bombarda, e com António Flores. A sua linha de acção foi fortemente  influenciada pela escola alemã, com a qual contactou nos tempos de estágio de 2 anos na clínica de Karl Kleist, onde recebeu influências de Funfgeld,  e mais tarde na clínica de Kurt Schneider em Munique.  Fruto da sua clarividência e da sua tenacidade nascia o curso universitário de Psicologia,disciplina que obtinha assim o pleno reconhecimento e maioridade em Portugal. Participou activamente, em colaboração com António Flores, nos trabalhos preparatórios da fundação do Hospital Júlio de Matos, onde veio a criar o 1º hospital de dia de psiquiatria e a terapêutica ocupacional nos doentes deste foro. As publicações de que foi autor reflectem a sua preocupação por transmitir o conhecimento e a sua experiência, quer à comunidade científica da área neuropsiquiátrica, quer ao público não especializado. É sobretudo a este último que se dirige a sua obra em 3 volumes “No signo de Hipócrates”. Os temas que prendiam a atenção do Mestre, além da Medicina, eram principalmente a literatura, a filosofia e a arte, com destaque para a música. Temas exteriores à Medicina, mas que ele reconhecia como com ela relacionáveis, fruto do seu conceito de abordagem sob um ponto de vista convergente dos temas, ou daquilo que hoje chamamos conhecimento translacional. O seu desejo insaciável pelo conhecimento, a sua paixão, como ele próprio classificou (“...um trabalhador apaixonado pelo saber”...), presidiu ao seu interesse pela sua aquisição, produção e transmissão, materializada na sua intensa actividade pedagógica e na sua produção literária, que o levou a ser presidente da Sociedade Portuguesa de Escritores Médicos.


Barahona Fernandes
Desde a sua licenciatura, em 1930, pela Faculdade de Medicina de Lisboa, o seu trajecto académico foi sempre ascensional, recheado de intensa actividade pedagógica e profícua actividade de investigação. Em associação com Pedro Polónio, BH defendeu conceitos pioneiros, à frente do seu tempo, o  que leva o Psiquiatra António Gamito a afirmar: ” É curioso que quase 50 anos antes, duas das mais importantes conclusões do estudo de Halle tenham sido premunidas e enunciadas por esta Escola Portuguesa quase completamente olvidada”.  Como Reitor da Universidade de Lisboa, cargo que exerceu entre 1974 e 1977, deixou marcas indeléveis  daquilo que pensava ser o papel da universidade: num quadro de autonomia, numa perspectiva democrático-liberal, promover a criatividade através da investigação científica básica e aplicada. Após a sua jubilação em 1977, manteve-se em actividade até ao dia em que a morte o surpreendeu, com 85 anos de idade. Manter viva a sua memória, de médico, cientista, humanista e transmontano genuíno, deve merecer o esforço de um transmontano que se preza. Talvez a sua terra possa até, nesta matéria, fazer mais e melhor.
 in: Trás-os-Montes e Alto douro, mosaico de Ciência e Cultura (2011)

                                O Autor

Abílio António Ferreira Gomes, 62 anos, natural de Vinhais. Coronel Médico do Exército na situação de reforma, especialista em Cardiologia. Ex-assistente da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa. Ex-Director do Serviço de Cardiologia do Hospital Militar Principal. No Exército comandou unidades operacionais do Serviço de Saúde, nomeadamente o Destacamento Sanitário 7 na MONUA (Angola). Professor do Instituto de Altos Estudos Militares e do Instituto de Estudos Superiores Militares. Foi Director do Hospital Militar de Belém. Foi Sub-Director do Serviço de Saúde do Exército. Exerceu o cargo de Assessor de Saúde Militar no Ministério da Defesa Nacional. Participou nas actividades da organização de saúde da NATO (COMEDS). Responsável técnico e Director de Projectos de I & D. Recebeu várias condecorações do Exército e das Nações Unidas. Foi Presidente do Instituto Nacional de Emergência Médica (INEM).

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