quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

Pedaços de Memória - A Alfarroba



Nasci sob o signo da guerra, mas vim trazer a paz.
O ano de 1942 incendiava os valores humanos numa luta sangrenta pelos direitos da vida, num medo constante do desconhecido.
Ainda apanhei três anos de horrores, de que não me lembro, mas que mais tarde li, e ouvi falar. Macabros assassinatos em chusma, ditados por um pobre doido insensível à dor humana, de corpos mutilados em almas desfeitas, parecendo fictícios pesadelos.
 Pude vê-los e senti-los em Aushewitz, nos buracos abertos no tecto por onde escorria o gás da morte, na padiola fúnebre que transportava os corpos para os fornos crematórios, na montanha de bonecas e armações de óculos deixados para eterna e macabra memória. Que ao olhá-los os homens amem a paz.
Horrores duma guerra, que mesmo de olhos fechados magoam sempre a minha alma.
Vi pois a luz do sol em pleno tempo da 2ª guerra mundial.

Uma história soberba!

Ao meu lugar chegavam fracos e diluídos os ecos duma guerra longínqua que nada diziam à minha infância, mas que aos mais crescidos fazia suar sangue e lágrimas.
 Era o tempo do minério, que todos iam explorar nas minas.
Mas não é esse lado que hoje quero explorar.
Do que me ficou, relato outro facto para a posteridade.
 Em frente à casa da minha avó materna vivia um seu irmão, o meu tio Teixeira.
 Este possuía na época uma enorme e linda casa que era a única pensão da vila e redondezas, com muitos quartos com janelas de cortinas viradas para a rua, que era estrada nacional a ligar Vila Real a Bragança.
 Pegada, tinha uma enorme estrebaria calcetada a cubos de granito! A toda a volta uma enorme quinta que abrangia duas estradas e um caminho.
Foi nessa estrebaria que vi os mais belos exemplares equídeos, cavalos brancos e castanhos, do Regimento de Infantaria de Vila Real que para aqui vinham treinar-se para uma possível e provável entrada na guerra.
Além dessa bela imagem dos cavalos grandes, luzidios e elegantes na sua imponência, recordo o seu alimento: a fava-rica! Mais concretamente a alfarroba de que nesse tempo desconhecia o nome.
Nessa altura da fome, que eu jamais senti porque, quase todos os alimentos os campos nos davam, vi alguém comer essa fava-rica, que constituía a ração dos cavalos.
 Assim, lembro-me, de também provar dessa fava tão macia e doce que me ficou na memória! Boa! Deliciosa! Diria, quase divino manjar dos anjos, dados aos cavalos! Tinha um sabor não sei a quê, mas era um doce sabor que se prolongou por dezenas de anos e viveu horas felizes no fundo da minha memória.
Foi quebrado esse encanto, quando, certa vez, no Algarve, vendo tantas árvores prenhes desse fruto escuro, comprido que me sabia ainda no tempo a chocolate e que, tantos anos, preencheu o meu imaginário infantil, quis provar de novo.
 Mas…
Ó desilusão! Qual doce e saboroso sabor a chocolate!?
Eram alfarrobas, alimento de animais e não tinham nada o sabor da infância.
Foi então que o meu sonho intacto e ilusório caiu desfeito no chão.
 Aquela vagem comprida, castanha, quase seca, era intragável ao paladar da mulher que, tantos anos, a sonhara doce! Não tinha nada o sabor dos sonhos, com que cerziu banquetes de fadas e príncipes encantados da sua infância.
 E, como tantas ilusões, tudo se desmoronou, ali, no chão, ao sul do seu país.

24/06/010
Donzília
 in: Trás-os-Montes e Alto Douro, Mosaico de Ciência e Cultura (2011)


A autora

Donzília da Conceição Ribeiro Martins nasceu em Murça no dia 25 de Setembro de 1942. Licenciada em Histórico-Filosóficas. Publicou vários livros de poesia (“Lágrimas e Sorrisos em Sonhos de Vida”, “Lírios do Campo”, “Quando o Teu Olhar “), de contos (“Um País Na Janela do Meu Nome”), infanto-juvenis (“História do Zé Luís o Menino Petiz”,Sonhos de Encantar - sete histórias para imaginar”, “O Grilo e o Passarinho”) e de investigação (“O Mercado Feira de Lordelo - Subsídios para a a História”). Foi consultora Pedagógica durante três anos da Areal Editores”. Fundou e é sócia de algumas associações literárias e artísticas, participou em colectâneas (autores do Vale do Sousa) e antologias, praticou jornalismo, rádio e colaborou na revista “Presença” de A. Lord. Foi reconhecida com alguns prémios e menções honrosas. Em 18 de Julho de 2005 foi homenageada pela Câmara Municipal de Paredes com a placa de “Honra e Mérito – Paredes Reconhece”.

Alguns dos seus poemas podem ser lidos neste blogue:

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