terça-feira, 13 de dezembro de 2011

A estória do tenente Ilídio



Museu da escravatura, capela da
casa grande, séc.XVII

« Hoje, se me permitirem, vou contar a estória do tenente Ilídio. O tenente Ilídio foi meu comandante no tempo das FAPLA. Era pula. Os pais eram portugueses mas o tenente nasceu em Ndalatando, provincia do Kuanza Norte. Kamundongo como eu, ainda que não genuíno. Não sei da vida dele, aliás a estória que vou contar é a da sua morte. Mas sei que tinha vinte e poucos anos, era casado e deixou dois filhos. Como todos os pulas, fumava muito e bebia muito café. Ché, o Ilídio fumava. Mesmo. Acendia cigarro, acabava, acendia já outro, e assim sucessivamente. Se não tivesse morrido ainda na guerra, morria de cancro no pulmão.

O dia em que morreu era véspera do dia das Fapla. O tenente comandava três pelotões estacionados em Dangeamenha, na estrada que vai de Ndalatando para o Dondo. Ocupávamos umas antigas instalações comerciais, compostas por três fileiras de lojas que formavam um u virado para a estrada e no meio estava o posto de comando. Do lado de lá da estrada estava o campo minado.
Nessa noite, eu fazia a ronda nos meus homens que cobriam a estrada. Tudo muito bem. Aí os homens da Unita fizeram fogo sobre o flanco Sul. Muito fogo mesmo. Aí os homens desse pelotão fogem em direcção para o posto Este. Eu e os meus fugimos para Norte. O tenente Ilídio que dormia no posto de comando acorda e em vez de fugir para Este, vai na direcção do fogo da Unita. Aí fez muitos tiros, mas foi apanhado sozinho e quando deu conta já ficou tarde. Lhe acertaram no pé e apanharam vivo. Normalmente matariam logo ali. Mas como era pula, lhe mataram mal, lhe deram com bloco de construção que estava assim no chão. Morreu muito mal mesmo. Com a Unita era assim mesmo. Se apanhavam Fapla mbumbo matava logo. Mas pula ou cubano aí demoravam de raiva. Nós nas Fapla matávamos logo. Bem se fosse oficial demorávamos para colher informação mas depois também matávamos. Mas matávamos só.
Ché, a Unita não gostava de brancos, mesmo. Para o mais velho Mbimbi, mesmo apesar de pedir ajuda na África do Sul, Angola era só para o mbumbo. Não tinha essa coisa de todos somos angolanos. Eu na altura não pensava assim. Mas hoje fico a reparar que actualmente o pula vem aqui, ocupa o lugar do angolano genuíno, vem ganhar muita bufunfa e o mbumbo a passar todo o tipo de dificuldade. Pode dizer mesmo que eu sou racista. Mas a realidade é essa. Por exemplo, se o pula nasceu em Angola, mesmo que não tenha vivido aqui, pede logo a nacionalidade e vira angolano. Já o angolano mesmo que tenha nascido aí na Tuga, não lhe dão. Como é, então?
Aqui na empresa praticamente todo o chefe, assim chefe importante mesmo, é pula. Todos eles ganham muito cumbu. Mesmo muito cumbu. E tem casa e tem carro com motorista, e tem girador e água tvcabo e o quê. Vão me falar que o dono da empresa é mbumbo como eu. É verdade. Mas esse nunca aparece. Que me dá ordem mesmo é o pula. Qualquer dia isso vai dar maka. Não comigo que estou cansado de guerra. Mas aí os candengues que vendem saldo e gasosa no engarrafamento estão a começar a ficar muito chateados. E esses candengues já não lembram mais da guerra. Estão com muita disponibilidade para fazerem confusão.

Saudações a todos »
Joaquim Quicola in Aventar


Comentário:

Este texto, bem como a imagem que o acompanha, foi-nos enviado por mão amiga. Não conhecemos o seu autor nem a fonte onde foi publicado. Nem descortinámos a imagem que o acompanha. Não sabemos a que local se refere, a não ser aquele da legenda que a acompanha.

Mapa Turistico de Angola (1972)

Podemos dizer que nos deliciámos com a sonoridade da linguagem. Para quem, durante anos, participou directamente em diálogos com indígenas angolanos, só pode deliciar-se foneticamente com o texto (por isso nos foi enviado). Quanto ao conteúdo … é motivo para reparo.
As raças, como ainda hoje é costume serem classificadas pelo cidadão comum, não existem. Isso é fruto de erro grosseiro científico (e cultural) do século XIX[1]. O que existe é a espécie humana. Sejam “amarelos”, “pretos”, brancos”, ou “vermelhos”, todos pertencem à mesma espécie – a humana. E nesse aspecto, salvo as diferenças de individualidade, somos todos “iguais”. Biologicamente, diga-se.
O racismo como ainda hoje é denominado, nem sequer tem como origem a “raça”, mas sim o poder, essencialmente económico e de género. Ou cultural. Sejam “pretos” ou “brancos”, “amarelos” ou “vermelhos”, diferenciam-se, sobretudo, pelo dinheiro que trazem no bolso! A “raça” pouco importa. Não é tanto a cor da pele que importa. É mais o dinheiro que se possui, o género a que se pertence ou o aspecto (grupo) cultural que se atinge.
O que mais se vê por aí são sócios “pretos” e “brancos” de empresas multinacionais. Cite-se como exemplo o caso recente da compra do BPN, pelo banco angolano BIC. O que lhes interessa é o dinheiro, não a cor da pele.
Mesmo de "branco" para "branco" esse racismo existe, quando se trata de diferenças económicas*.
Shirley Chisholm, a primeira congressista negra americana, eleita em 1969, disse: “Fui muito mais vezes discriminada por ser mulher do que por ser negra”[2]. E a suíça Corinne Hofmann, conta-nos numa bela narrativa o seu enlace com um preto massai do Quénia e o seu divórcio por motivos culturais[3].
Quanto à questão da escravatura, já é tempo de acabar com velhos mitos. Portugal foi tão esclavagista como outros países, desde a Antiguidade. Apesar de tudo, não foi igual a tantos outros. Em pequenos pormenores soube diferenciar-se. Foi dos primeiros a com ela acabar. Pelo menos em termos legais, por decreto de Dona Maria II em 1836. E muito antes de os portugueses a praticarem em África, já os Árabes dela faziam a sua principal fonte de rendimento[4]. Os de Zenzibar. Os próprios nativos os antecederam em muito. Eles próprios escravizavam os seus “irmãos de cor”. Isso está hoje bem documentado. Silva Porto descreve-o nos seus apontamentos[5]. E quanto à atitude dos portugueses, embora mais tarde, por interesses estratégicos estrangeiros, Stanley[6] tenha “virado o bico ao prego”, em 1878 defendia Portugal de acusações que considerava infundadas e injustas, pois, nas palavras do explorador “os portugueses abominavam tanto a escravatura como qualquer filantropo inglês ou americano”.
Armando Palavras



[1] Propagados por Haeckel , Gumplowicz e   Gobineau que retiraram conclusões históricas e sociais da tese de Darwin. Francois Jacob, há muito que chamou atenção para esse perigo. O utilizar-se métodos científicos na conduta humana e social. Mas o erro persiste. Principalmente nas chamadas Ciências de Educação.
* Richard Branson contava uma história a este respeito. Dizia: se um pobre tiver uma ideia boa, mas fora do comum, dizem que é maluco. Se for um rico, que é excêntrico.
[2] Discursos que Mudaram o Mundo, Difel, 2009.
[3] Casei com um Massai, Bertrand, Lisbo, 2006.
[4] Hoje isto não é novidade para ninguém. Apenas para os estúpidos. Existem inúmeros estudos sobre a questão. Mas mesmo assim aconselha-se a leitura de um livro comum, escrito numa escrita leve: Rio de Sangue, de Tim Butcher.
[5] Novas jornadas de Silva Porto nos sertões africanos – Diários oferecidos à Sociedade de Geografia de Lisboa, 1886.
[6] Letter to the Secretary of the American Anti- Slavery Society, May 11th 1878 in Staneley’s First Opinions – Portugal and the slave trade, Lisbon, Geographical Society of Lisbon, 1883.

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