João Pedro Marques - OBSERVADOR
Para o curador da exposição, na Mensagem
de Pessoa, em vez de “Ó mar salgado, quanto do teu sal são lágrimas de
Portugal” deveria estar “Ó mar salgado, quanto do teu sal são lágrimas dos escravizados”
29 nov. 2025,
No meu próximo artigo direi o que penso dessas acusações da jornalista Brum. Para já quero fazer algumas considerações sobre as opiniões do curador da exposição, José Miguel Wisnik, acerca da relação de Portugal e dos portugueses com a escravatura. Tanto nas entrevistas que deu aos jornais, como no texto que escreveu no já referido livro, o curador aponta o dedo a um suposto encobrimento. Diz nomeadamente ao jornal Sol que “a escravidão e a chamada abolição vieram com um apagamento do passado e principalmente do quanto continua presente no Brasil o passado escravista” e, mais adiante, refere que no contexto da exposição, foi decidido dar prioridade aos “testemunhos apagados, invisibilizados. Portanto, àquilo que foi encoberto, àquilo de que não se fala. A escravidão é um tema não falado no Brasil e acredito que não falado em Portugal”.
Ou seja, o curador da
exposição lança-se a presumir que em Portugal esses assuntos não se debatem. Está
enganado, claro, mas essa ideia de suposto silêncio ou de apagamento em torno
da história da escravatura tem uma função, expressa ou latente. Essa função é a
de transmitir às pessoas que generosos e desafrontados activistas chegaram
finalmente para combater os recalcamentos e revelar informações tidas por
incómodas, vergonhosas, escondidas. O problema de muitos destes autoproclamados
anunciadores de verdades supostamente encobertas ou omitidas é que nos trazem,
por sua vez, um extenso rol de erros, imprecisões e outros apagamentos.
Vejamos como, voltando
ao penúltimo parágrafo. Não parece que José Miguel Wisnik conheça o cenário da
investigação e do debate público sobre escravatura que tem sido feito em
Portugal. Porém, diz conhecer bem Fernando Pessoa e detecta na sua poesia a
marca do silêncio e da ocultação. Ainda que admire muitíssimo o poeta
português, Wisnik considera que é necessário “encarar o ranço escravista e racista
latente em sua decantação apologética da magnitude imperial portuguesa” e
reconhecer que em Mensagem em vez de “Ó mar salgado, quanto do
teu sal são lágrimas de Portugal” deveria estar “Ó mar salgado, quanto do teu
sal são lágrimas dos escravizados”. Ou seja, para o curador de “Complexo
Brasil” o nosso poeta só teve olhos para as façanhas e grandezas de Portugal, e
apagou os escravos e tudo o que com eles se relaciona. Wisnik estranha que o
mesmo Pessoa que viu “tantos piratas (no poema pan-oceânico que é a Ode
Marítima)”, não tenha visto “nenhum traficante de escravos”.
Sucede que esta afirmação está errada. Até seria compreensível que Pessoa não tivesse visto traficantes de escravos porque o assunto não tinha nem tem, em Portugal, a importância que assumia e assume no Brasil, quer em termos históricos quer no que se relaciona com a economia e o tecido social. Apesar disso a escravatura e os traficantes de escravos não foram omitidos por Fernando Pessoa, bem pelo contrário. No seu longuíssimo poema “Ode Marítima” o poeta dirige-se aos
Homens
que erguestes padrões, que destes nomes a cabos!
Homens que negociastes pela primeira vez com pretos!
Que primeiro vendestes escravos de novas terras!
Que destes o primeiro espasmo europeu às negras atónitas!
Que trouxestes ouro, missanga, madeiras cheirosas, setas,
De encostas explodindo em verde vegetação!
Homens que saqueastes tranquilas povoações africanas,
Que fizestes fugir com o ruído de canhões essas raças,
Que matastes, roubastes, torturastes, ganhastes
Os prémios de Novidade de quem, de cabeça baixa
Arremete contra o mistério de novos mares! Eh-eh-eh-eh-eh!
A vós todos num, a vós todos em vós todos como um,
A vós todos misturados, entrecruzados,
A vós todos sangrentos, violentos, odiados, temidos, sagrados,
Eu vos saúdo, eu vos saúdo, eu vos saúdo!
Não há, portanto,
omissão ou disfarce da escravatura ou da violência colonial portuguesa. O mais
curioso, porém, é que ao censurar a suposta miopia ou parcialidade de Fernando
Pessoa, que não teria visto negreiros, Wisnik não repara nos seus próprios
silenciamentos, encobrimentos ou camuflagens.
De facto, há, no seu
texto e nas suas declarações aos jornais, como nas de muitos outros cidadãos
brasileiros, uma necessidade de apagar ou minorar o envolvimento do Brasil no
tráfico de negros e de descarregar o ónus da escravatura inteira ou
substancialmente para cima das costas do português. Em declarações ao Expresso, o curador da exposição “Complexo Brasil”,
refere o número de “escravizados” levados por Portugal para o território
brasileiro, sublinha que “foram três vezes mais do que toda a América
Hispânica” — o que, diga-se, peca por defeito —, mas não menciona o número de
escravizados que o Brasil já independente importou, como se o Brasil e os
brasileiros não fizessem parte dessa equação. Essa omissão também se verifica
no texto que Wisnik escreveu no livro que aqui analiso, onde diz que “Portugal
arrastou uma imensidão de gentes de um continente para outro”. Sim, é verdade,
mas… e o Brasil? Não o fez também? Onde está o Brasil negreiro no texto, na
mente e no dedo acusatório de Wisnik? Está camuflado ou então passa como cão
por vinha vindimada.
É bem certo que o autor
afirma que o Brasil foi “a única nação independente que praticou maciçamente o
tráfico negreiro” — o que é obscuro ou falso —, e que o território brasileiro
foi o “maior agregado político escravista americano” — o que também não é
verdade, pois no tempo da Guerra da Secessão viveriam no território da
Confederação quase 4 milhões de escravos negros. Também é justo referir que nos
fala do tráfico “depois da Independência” e da lei brasileira de 1831, mas
nunca fica claro — isto é, nunca fica preto no branco —, que foram os
brasileiros a permitir que o tráfico prosseguisse e a infringir essa lei de
1831.
Wisnik também não nos
dá números para esse período pós-independência. Eu já tive oportunidade
de debater
esse assunto na televisão com uma jornalista brasileira e de lhe fazer ver, e
aos telespectadores que assistiram ao debate, que de 1822, quando proclamaram a
independência, até 1852, ano em que o tráfico para o seu país praticamente
acabou, os brasileiros importaram escravos negros a uma cadência
nunca antes vista.
No total, nesses 30 anos, segundo as últimas estimativas, entraram no Brasil,
vindos de África, quase 1,5 milhões de escravos africanos. Um record. Isso não
foi responsabilidade dos governos de Lisboa, mas sim dos do Rio de Janeiro.
Para além desse
disfarce do envolvimento directo do Brasil no tráfico transatlântico, para além
também de um apagão completo do papel dos africanos, sem os quais o envio de
milhões de pessoas para as Américas nunca teria sido possível, mas que
curiosamente nunca foram referidos no texto e nas declarações de Wisnik, as
suas ideias sobre escravatura também enfermam de dois importantes erros que
infelizmente, e por via do livro, passarão para quem o ler. De facto, o curador
da exposição “Complexo Brasil” afirma no seu texto que “Portugal é pioneiro na
escravização de africanos na Europa” e que “quase metade (mais de quarenta por
cento) do total dos africanos mundialmente escravizados destinaram-se ao
Brasil”. São dois erros importantes, sobretudo o segundo, que é mesmo abissal.
Vejamos: em primeiro
lugar já havia escravos africanos, incluindo negros, na Europa durante a
vigência do Império Romano, ainda que no caso dos negros fossem uma relativa
raridade. Em segundo lugar garantir que os 5,8 milhões de escravos negros que
foram para o Brasil correspondem a mais de quarenta por cento do total de
africanos “mundialmente” (sic) escravizados é olhar apenas para os 12,5 milhões
que cruzaram o Atlântico a caminho das Américas e ignorar os muitos milhões que
foram escravizados na própria África — só o califado de Sokoto, que era, em
parte, na actual Nigéria, teria, no século XIX, cerca de 4 milhões de escravos
— e todos os que foram transportados através do Sara, do Mar Vermelho e do
Oceano Índico para os estados árabes, o Irão e outras partes do Oriente.
Calcula-se que tenham sido entre 14 e 17 milhões.
Ou seja, e em
conclusão, há nas palavras de José Miguel Wisnik e no texto que escreveu para o
livro que faz corpo comum com a exposição “Complexo Brasil”, alguns importantes
erros, e também uma espécie de jogo de espelhos. Quando abordam o problema da
escravatura alguns activistas e intelectuais brasileiros gostam de nos falar em
silêncio e ocultação, e têm razão, mas estão a bater à porta errada. Quem mais
silencia e oculta são (ou foram) eles próprios, omitindo, disfarçando,
atenuando, o papel que o Brasil teve no tráfico. Os brasileiros tendem a tirar
o corpo fora dessa história tentando, consciente ou inconscientemente, fazer passar
a ideia de que ela é essencialmente uma história portuguesa. Ao que parece essa
ideia tem livre curso no Brasil e talvez isso ajude, em parte, a explicar o
lamentável texto de Eliane Brum, que abordarei no meu próximo artigo.
Entretanto deixo um conselho: vejam a exposição, mas ignorem ou rejeitem o
livro que a acompanha.

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