Foi ao início desta noite, mas de 1964, que, no Rio Douro,
freguesia de Caldas de Aregos, do concelho de Resende, se iniciava uma prova
noturna, rio abaixo, em barquitos pneumáticos, feitos para quatro pessoas mas
que, naquele caso, levavam oito instruendos. Dois instrutores de carreira, licenciados
em operações especiais nos USA, foram os comandantes desse terceiro curso
«Ranger» que eternizou e afamou Lamego até hoje. Foram cerca de quatro meses de
curso, para oficiais e sargentos milicianos que tinham como objetivo preparar
64 jovens furriéis e alferes rumo à guerra nos territórios portugueses
ultramarinos. Não eram voluntários. Pelo contrário foram esses e outros
mancebos que tiveram de abandonar tudo e todos, para cumprirem um dever cívico.
A instrução era imprópria para quem, durante os quase quatro meses de preparação, em Mafra e Tavira, acrescida dos cinco de recruta em Lamego, integrava as companhias e os Batalhões que durante treze anos protagonizaram a mais dramática guerrilha do século XX.
Sessenta anos depois, precisamente na mesma data e hora em que essa tragédia se iniciou, o signatário entendeu rememorar o que ele e mais 63 protagonizaram nessa prova mortal. No final do curso, durante a última refeição, o comandante do Centro de Operações Especiais de Lamego afirmou: o incidente do Rio Douro, na tragédia noturna dessa noite, foi um incidente que serve para mostrar, ao povo, a dureza deste curso. O «Jornal de Notícias» do dia seguinte (23/11/1964) publicou a notícia cujo fac-símile aqui publicamos. E já depois do 25 de Abril de 1974, o semanário «O País», de 18 de Junho de 1981, relatou o texto que se segue.
Os factos do naufrágio mortal
«O naufrágio envolveu apenas oito militares, mas
preparava-se para implicar 64 instruendos. Cada pneumático levava oito jovens,
entre oficiais e sargentos milicianos. Dois eram os instrutores.
Dos 64 instruendos, metade eram aspirantes, e os restantes,
cabos milicianos e/ou sargentos. Todos jovens que se preparavam para formar
Companhias e Batalhões, rumo ao Ultramar. Nessa altura do curso de quatro
meses, já depois de termos tido cerca de meio ano de instrução, voltaríamos às
unidades mobilizadoras para sermos integrados em unidades militares.
Os dois oficiais de carreira, com a patente de tenentes do
quadro, tinham regressado dos USA, onde haviam obtido a formação que nos
impunham. Essa marcha noturna era novidade absoluta e, metidos em Lamego, em
duas viaturas de lona escura, juntamente com os oito barcos de borracha para
sermos levados para Caldas de Aregos, uma zona de margens mais estreitas.
Eu não sabia nadar e, previamente, neguei-me a entrar no
pneumático com capacidade para 4, mas que, ali, teria que levar 8. Acabei por
entrar no 1º barquito com mais sete: seis instruendos e um instrutor que me
garantira segurança, com a sua presença, nessa primeira partida. Os restantes
sete barcos sairiam à medida em que ficassem cheios de ar. Só que tudo correu
mal e, por sorte, já não embarcaram.
Essa 1ª jangada entrou no rio
escuro, com quatro a remar e outros quatro agarrados às cordas do pneumático,
«para eu perder o medo». Mal entrámos, quatro remadores foram cuspidos para
fora do barquito; os restantes quatro não mais se desprenderam. O pneumático
voltou-se, com o fundo para cima e, durante cerca de meia hora, fomos vogando
entre rápidos e afluentes, em redemoinhos dantescos, entre berros desesperados
dos quatro náufragos, que apenas se reconheciam pela voz.
Esses berros fizeram com que os cães das aldeias vizinhas
alertassem para o acidente.
À passagem por alturas de Portozelo, um grupo de pessoas
que jogavam sueca ao serão, gritaram-nos que aguentássemos que nos iam salvar.
E salvaram em situações arriscadas pela inclinação do terreno. Só depois desse
salvamento, já com cinco corporações de Bombeiros, a vigiar as duas margens,
soubemos que o furriel açoriano, José Dutra, tinha desaparecido e que o
fracasso da primeira partida contribuiu para que nenhum dos restantes barcos
tivesse entrado naquele inferno.
De 23 de Novembro a 26 de Dezembro nada mais se soube do ranger desaparecido. Apareceu o corpo dele, totalmente desfigurado, 33 dias depois dessa tragédia, que não foi maior pelo facto de apenas um pneumático ter entrado no Rio. Teria sido uma das maiores hecatombes da guerra do ultramar, se tivessem entrado nessa mal preparada operação militar os oito frágeis pneumáticos preparados para tão arriscado exercício. A minha prévia entrada no rio «para perder o medo» terá valido a pena, para evitar a entrada dos 56 restantes instruendos.»
Barroso da Fonte
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