quinta-feira, 23 de novembro de 2023

Um diálogo mortal entre náufragos no Rio Douro

 


Na noite de 22 para 23 de Novembro de 1964, a um mês do fim do curso de operações especiais, em Lamego, os alferes do quadro permanente, Fonseca e Morais, responsáveis pela formação dessas seis dezenas de oficiais e sargentos, pelas 20 horas, meteram-nos em duas viaturas de carga, tapadas com os toldos como se fôssemos mercadoria secreta e, dando várias voltas à cidade de Lamego, apesar da noite escura como breu, conduziram aqueles instruendos para Caldas de Aregos, onde, junto ao Rio Douro, costuma fazer-se o transporte de mercadorias agrícolas: uvas, azeite, verduras e batatas, em barcos de madeira, de uma para a outra margem.

Chegados lá, duas horas depois, sem qualquer lamparina ou clarão elétrico, tanto mais que ainda lá não existia a Barragem de Mosteirô, os instrutores entregaram oito barcos pneumáticos aos 60 formandos, com a recomendação de os encherem de ar e se fazerem ao rio, em grupos de oito, num trajeto de cerca de 10 km. A capacidade do pneumático era para quatro, mas entenderam meter oito.

Eu pertencia ao grupo do alferes Morais. Disse-lhe que me negava a meter-me no barco porque eu não sabia nadar. Que me punisse, que me remetesse às origens, mas no barco, não.

Garantiu-me que ele iria na minha embarcação e que se responsabilizaria por tudo. Que não tivesse receio. E, para me tranquilizar, foi perentório: vamos já encher o nosso barco e, enquanto os outros sete se preparam, nós vamos treinando, aqui na margem, para perderem o receio. Acabei por entrar. Os quatro “aselhas” começariam por agarrar-se a uma corda envolvente ao pneumático. Os restantes nadadores iriam agarrados aos remos. Enquanto decorriam os preparativos, um barqueiro que ali apareceu teve consciência da gravidade da situação e disse-me:

Ó senhor, se não sabe nadar, não entre no barco. Os senhores não conhecem o rio. Vai ser uma desgraça!

Ó meu caro senhor, por favor, não me assuste mais!

E lá entrámos os oito náufragos, que viríamos a ser, menos de um minuto depois da entrada na água. Apanhámos um rápido. Não se via absolutamente nada e, como que fulminado por um raio, o barco voltou-se e começou a bater nos penedos que havia no meio do rio. Passaram a ouvir-se gritos dos quatro que íamos agarrados à pequena corda. Dos outros quatro que iam a remar nada mais se ouviu. Viemos a saber que três deles: o Morais, o Lucas e o Fonseca conseguiram subir aos penedos, de onde foram resgatados.

O quarteto dos «aselhas» era constituído pelo Sargento Velez, pelo aspirante Lopes, pelo cabo miliciano, igualmente Lopes e pelo aspirante Fonte. Apenas nos reconhecíamos pela voz, cada qual a mais dramática:

O Sargento Velez, militar de carreira, casado e pai de filhos, clamava:

Ai quem me dera tirar do bolso a carteira e ver, pela última vez, as fotos da minha mulher e dos meus filhos. Ai quem me dera!...

Meus senhores, tragam cordas e venham salvar-nos que vamos perdidos no rio. Venham meus senhores, venham depressa para nos salvarem! - dizia eu, ouvindo cães que ladravam, lá longe, à medida que anunciavam a tragédia a quem jogava sueca, ao serão, nas aldeias vizinhas, por onde o barco desgovernado nos levava.

Ó filhos da puta que nos matastes, aqui no rio, grandes sacanas, seus cobardes, miseráveis, andais a brincar connosco! - vociferava o cabo miliciano Lopes.

Já o aspirante Lopes, mais resignado e ainda embevecido pela irracionalidade da instrução, me aconselhava:

Ó Fonte, não berres que parece mal! Vamos aguentar enquanto pudermos!...

O diálogo destes quatro instruendos decorria neste tom e manteve-se durante hora e meia e ao longo de um percurso de cerca de quatro quilómetros, ora em remoinhos, ora indo ao fundo e voltando à tona, ora mais apressado, consoante os rápidos, ora mais lento conforme a planura e imensidão do rio que, na noite de 22 para 23 de Novembro de 1964, tinha uma corrente idêntica à de sempre, nessa época do ano.

Foi de tal forma dramática a situação que os quatro náufragos protagonizaram, nessa noite tão gelada como escura e tão ampla quanto duraram 90 minutos de incerteza, que os cães da aldeia de Portozelo assumiram o humanismo que faltou aos instrutores, conseguindo, com seu ladrar intenso e ininterrupto, alertar os barqueiros daquela aldeia, Vítor Pereira de Lemos e José Monteiro de Barros, a interromperem o jogo da sueca e a descerem o íngreme desfiladeiro, soltando os barcos de madeira que costumavam usar na faina diária, para recolherem os quatro enregelados militares, mais mortos do que vivos.

Recordo-me que, dos quatro, fui o primeiro a ser recolhido e a ser levado para a margem do rio. Apenas sabia que tinha cabeça. O resto do corpo não o sentia. Um grupo de populares logo acorreu ao apelo daqueles dois heróis que ninguém até hoje louvou. Quatro desses populares levaram-me em braços, ladeira acima, uns bons 50 metros, muito íngremes.

Em Portozelo, numa ampla cozinha, nessa altura, já cheia de colegas militares que, alertados pelo primeiro barco, não chegaram a fazer-se ao rio, vieram nas viaturas, até ali, onde foram informados do socorro já prestado pelos generosos populares.

Uma enorme fogueira, roupa e aguardente fervida com açúcar, mulheres em pranto, como se fôssemos seus filhos, populares emocionados e incansáveis nos esperavam.

O alferes Fonseca, responsável pela operação, mal me viu, agarrou-se a mim e, ambos, caímos em cima de uma pequena divisão em madeira:

Ai Fonte, era por si que eu mais temia, por ser aquele que menos sabe nadar! Perdoe-me porque tudo correu mal...

Os populares desgarraram-me do Alferes Fonseca e fizeram-me beber meio copo de aguardente queimada. Exigiram-me que vestisse roupas que me servissem, já ali disponíveis e calçasse umas botas, quase encontradas por medida. Ora rindo, ora chorando, parecia-me acordar de um sono profundo. Para mim, o pesadelo estava vencido.

Nessa ânsia de medir a dimensão da tragédia, vestido e reconfortado, já com todo o meu corpo a dar sinal de normalidade, saí dessa casa, sem que os outros três meus colegas de infortúnio tivessem chegado. Sabia que já vinham todos em ombros, como eu viera e que iriam ter o excelente acolhimento que eu tive e que me devolveu à vida.

Perguntei por onde era a estrada que me reconduziria a Caldas de Aregos.

A noite continuava escura. Alguns dos meus colegas vinham em pequenos grupos, estrada abaixo, a juntar-se aos recuperados náufragos. Um deles, era eu e dizia-lhes:

Amigos, os quatro estamos salvos. Vão abraçar os três que estão a ser recuperados aí numa casa dessa aldeia. Eu estou bem.

Dos que foram cuspidos para o rio, salvaram-se os quatro?

Não. Falta o Dutra!

Continuei, como um doido, a correr, estrada acima, a informar quem passasse que nós estávamos salvos. Eram abraços de alegria, uma solidariedade estonteante, um delírio coletivo por estarem vivos sete dos naufragados.

O meu regresso à vida terminou por volta da meia-noite. Cerca das duas da madrugada chegava eu ao local do crime, de onde partira, cerca das 22,30h. Ao contrário do que poderá parecer, não me sentia cansado. Nunca fui maratonista, mas imagino que me sentisse como tal, visto que fizera um percurso dantesco, em tempo recorde. Narrei, em voz alta, esse drama. Os poucos que ainda não haviam arredado pé, abraçavam-me como se eu fosse um herói. Nada disso. Heróis foram os barqueiros de Portozelo e aquela Gente rural, tão bondosa, tão fraterna, tão humana que nos retirou do inferno, onde comandos, sem escrúpulos, nos meteram, sem culpa formada. Possivelmente chegaram a generais...

O José Dutra era natural da Horta (Açores). Antes de ser chamado para o altar do sacrifício supremo, interrompera uma carta que estava a escrever à namorada e na qual exarou as últimas palavras da sua vida: «Estou a ser chamado para mais uma saída noturna. Não sei se...». Certamente quereria dizer: «voltarei»...

Infelizmente, sendo ele, de entre os oito que iam no pneumático, quem melhor sabia nadar, foi o único que morreu afogado, aparecendo o seu corpo 33 dias depois, dia 26 de Dezembro, onde hoje existe o muro da Barragem de Mosteirô.

Todos levávamos, como era hábito, a arma Maüser, em bandoleira. Com a reviravolta do pneumático é de supor que a arma dele tenha encalhado entre rochas, impedindo o jovem militar de vir à tona. Só quando o corpo inchou, a ponto de quebrar a alça, o cadáver se terá libertado.

Corporações de Bombeiros da Régua, do Porto, de Gaia, de Lamego e de Resende se revezaram, em pesquisas sucessivas, nesses 33 dias de procura do cadáver.

Não me consta que o Dutra ou qualquer outro militar tenha sido elogiado ou distinguido, através da família, com uma pensão de sangue. Um crime que não deveria ficar impune!

A televisão da época não noticiou a tragédia. E quase todos os jornais diários também não.

O comandante do curso, na sessão final, lamentou, dizendo que «era uma pena ter-se dado aquele acidente. Mas que também servia para dar mais realismo ao tipo de instrução que se ministrava no Curso de Operações Especiais».   Barroso da Fonte

 

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