Por Maria da Graça
NATAL DE OUTRORA - DIZIAM OS ANTIGOS ... -ALGUMAS MEMÓRIAS
As ovelhas afilavam os dentes nos mirrados
tocos das arçãs e as de bom dente tosquiavam as ásperas carrasqueiras.
Era a época natalícia, e
quando terminava o pesadelo das aulas, soava a liberdade e gostava de
acompanhar o rebanho por montes e vales.
Nesse dia, já o rebanho iniciava a descida dos montes rumo à corte. As chaminés e telhados dos Eixos deixavam esgueirar um fumo, do entardecer, mais intenso.
Ao passar por Vale
Freixinho, o Manuel da Penha numa azáfama mais asinha metia as últimas couves
tronchudas na sôfrega saca:
- Ó Manel, hoje também vão ser couves? - interrogou o pastor.
- Umas batatinhas com
couves e um bacalhauzito, é a cêa dos pobres! - rematou o Manuel, enquanto os
alvos dentes da burrica, com perícia de cirurgião. arrancavam as últimas folhas
enferrujadas duma silveira.
O instinto do rebanho
tinha mudado para um passo mais estugado e sempre pronto a devorar o folhato
seco do restolho ou alguma vergôntea esquecida de giesta.
Ao passar o Fojo e a
Ribeira, o assanhado latido dos cães do Trovoadas, da outra margem do Rabaçal,
anunciavam algum cliente mais retardatário que ia à azenha trocar o alqueire de
trigo por farinha para as filhózes.
O crepúsculo ia-se
arrastando silencioso, cobrindo montes e vales, As grossas águas murmuravam e
espumavam ao transporem o açude do Moleiro. O João e o criado travaram as duas
rodas e as mós pararam de remoer grão. Só o empoado Nero, de pêlo arruivado,
latia à nossa passagem.
As canhonas mais atiladas lançavam apelativos e soletrados berros pelos cordeiros irrequietos que davam os últimos saltos e correrias em caminhos batidos. O Zé Descalço podia causar estragos no rebanho, mas o Caixeiro, macho cioso, de imponente porte e generosos cornos, era o da dianteira, chefiando, sem oposição, a ovelhada. O tilintar dos chocalhos alternavam com o latir dos rafeiros do povoado.
O estômago gritava num
doloroso vazio pela cêa, porque embora criança tinha jejuado como os demais.
Uma ou outra moçoila enchia os cântaros no tanque. Quando entrei em casa até
tábuas comia.
Entro em casa e os olhos
ficam deslumbrados e empanturrados, e pouco depois, a mãe ordena:
- Ponde a mesa raparigas! Os homens já estão todos!
A Consoada iniciou-se por
um silencioso e abundante repasto só quebrado por alguma ordem da mãe.
Os meus olhos apontavam mais para a doçaria. O pai apontava-me o seu manjar preferido, o polvo frito em ovos.
Quando já se conversava
mais do que se comia, aparece o Manuel Grilo e o Guilherme Anicete para o
copito e prova da ordem.
O patriarca marcava o
ritmo:
- Por cima de mel o que
mais mal souber!
A lareira atiçada entoava
um melodioso e aconchegado crepitar, ruborizando os rostos.
Os rapazes do povoado desapareceram
para apanhar nos sequeiros uma pilha de troncos. No Terreiro da Igreja, a
poucos metros da minha casa paterna, e dizia o Arnaldo Falcão:
- Esta vai chegar para a
dos Eixes.
E as labaredas subiram
mais altas do que os telhados.
Jogámos ao par e ao pernão
em que os pinhões e as amêndoas iam minguando no bolso da minha ingenuidade e
pela matreirice dos mais crescidos.
Fui para a cama a pensar
no Menino Jesus, que se poderia esquecer da minha aldeia, da nossa lareira ou
das minhas botas postas em lugar de destaque - obra dos sapateiros de Foz Côa.
Ao acordar fui direito à lareira, como a raposa vai à capoeira. Os rebuçados fizeram-me estalar as remelas ensonadas e murmurar que o Menino Jesus podia ter aberto mais o saco.
A fogueira durou até de manhã e os sinos repenicaram lembrando a missa do beija-pé ao Menino Deus . Entre cânticos de alegria transbordante vimo-nos na fila que avançava sob o olhar risonho do Padre Ferreira:
"Vamos ao Presépio,
Vamos a Belém,
Adorar o Menino
Que salvar nos vem!"
Jorge Lage (Excerto)
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