JORGE GOLIAS
“Ao menino e ao borracho põe deus a
mão por baixo”, lá diz o ditado popular. Mas Deus nem sempre está! E muitas
vezes o menino esborracha-se.
A ideia de chegar perto de Deus pelo
despojamento é tão antiga como Sócrates, pois foi ele que disse: “quem deseja
menos coisas está decididamente mais perto dos deuses”. Muitos o associaram ao
infinito do Universo, mas, curiosamente, Einstein disse: “existem duas coisas
infinitas: o universo e a tolice dos homens”. Esqueceu-se de Deus!
Nietzsche, o niilista mais completo: ontológico,
porque negava a existência de qualquer realidade substancial, crítico,
porque negava a possibilidade da verdade, ético, porque não aceitava
nenhuma norma moral, e político porque negava a necessidade de Estado,
dizia então que o reino dos céus é um estado do coração. Afinal não era tão
radical como parecia! E a resposta traz-me à memória o pensamento de Rainier
Maria Rilke (cuja obra é muito marcada por uma percepção mística de Deus e da
morte) primeiro nas suas Cartas a um Jovem, onde com uma paciência de
deus vai respondendo a um jovem poeta de forma a educá-lo para a vida e quando
ele lhe diz que perdeu a fé em Deus, ele lhe responde se a terá perdido ou se
nunca a teve! Segundo, nas suas Histórias do Bom Deus onde em muitas
pequenas histórias vai explicando como se deve ver Deus por entre a Humanidade:
nas crianças, nos pobres, nos sofredores. Porém, não era esta a resposta que eu
queria encontrar. Eu queria encará-lo!
Voltaire é citado sobre Deus como
tendo dito: “Cumprimentamo-nos, mas não nos falamos!”.
O romance mais conhecido a respeito de
ter fé e se perder a fé e se ter voltado a ela na hora da morte, é “O Drama de
João Barois”, 1913, de Roger Martin du Gard, um Nobel francês (m.1958), que
marcou todas as gerações da primeira metade do séc. XX. Digo-o eu que sei do
que falo e, mais tarde, ouvi-o dizer a dois mais velhos: Mário Soares e José
Fernandes Fafe (que conheci em Cuba, como embaixador), que citaram este livro
como um dos que mais os marcaram na juventude. Jean Barois, um católico
fervoroso, nasceu na província, migrou para Paris, e rapidamente radicalizou,
liderando um movimento de crítica e luta contra a igreja, por razões
científicas e de racionalidade. Encurtando, depois de uma vida de luta radical,
líder incontestado, adoeceu, regressou à terra e agonizou. A expectativa de
todo o mundo era a de ver se ele resistia ao apelo religioso na ponta final, no
receio de O encontrar e ter de O ver e ouvir. Jean Barois, no seu leito de
morte, após uma lenta agonia e já in extremis pediu então para ser
confessado!
Guerra Junqueiro, que a certa altura
do seu percurso intelectual renunciou ao catolicismo, e escreveu os maiores
horrores anti-clericalistas do tempo, no seu leito de morte disse: “Dava toda a
minha glória para não ter saído do catolicismo”. Quem recolheu estes momentos
finais de GJ foi Raúl Brandão nas suas
Anos antes de GJ, em 1890, Camilo
punha termo à vida depois de ter buscado toda a ciência disponível para lhe
curar a cegueira, mas não sem antes se deixar também tentar por um acto de fé: em
resposta a uma carta do padre Sebastião, mandou escrever: “Comovido até às
lágrimas, ouvi ler a sua carta e senti fazer-se a luz da esperança na minha
alma em trevas (…) Cresce o meu agradecimento quando vejo V.ª Ex.ª recorrer ao
poder divino para que se opere o milagre que a ciência não fez nem poderá
fazer. Eu tenho muita confiança nas suas preces, acompanhadas da voz inocente
dos seus filhos adoptivos”. Pois nem Deus lhe valeu! Ou Deus não lhe perdoou?![1]
Amin Maalouf (1949) escritor
líbano-francês desde 1975, de família católica, superpremiado e supertraduzido,
questionava Deus assim: “Que homem nunca transgrediu a Tua Lei? Diz-me!”. Uma
vida sem pecado que gosto tem? Diz-me!”. Se punes com o mal o mal que eu fiz,
qual é a diferença entre Tu e eu? Diz-me!”
Saramago procurou-O, viveu a angústia
da sua ausência, e zangou-se por não O encontrar. Ficaram célebres os diálogos
entre o ateu (?) Saramago e o católico Cardeal-patriarca Porfírio. Um embate,
por vezes quase telúrico, mas de tal forma elevado que ambos estes personagens
antitéticos acabavam sempre por compreender e respeitar as suas opiniões, ainda
que muitas vezes inconciliáveis[2].
Há os que andam com Deus
e há os que nunca estiveram com Ele. Eduardo Lourenço cruzou se com Ele na
música clássica mais sublime. Mas seria apenas uma suspeita de que Ele
surfaria aquelas ondas. Voltaire foi sarcástico dizendo algo como “o sacana não
me fala” e o arquitecto brasileiro Óscar Niemeyer, que não acreditava
na sua existência, e já perto do fim, a perguntas sobre se o viesse a
encontrar na outra vida, respondeu que “isso seria uma agradável surpresa”. Ou
seja, o arquitecto não era ateu, era agnóstico, pois esta resposta admite a
existência.
Eduardo Lourenço, que cedo perdeu a
fé, escreveu algo que me toca também a mim de perto: "Cristo não disse que
vinha salvar a humanidade como um mágico, mas veio convencido de que a
humanidade se salvaria através do amor que ele portava em si mesmo. Tenho na
referência crística a referência fundamental da minha educação e da minha
maneira de ser”.
Depois do despojamento muitos convocam
o silêncio como sinal da presença de Deus: “Em todo o Universo, nada existe de
mais parecido com Deus, do que o silêncio”, Eckhart. Pois, o silêncio serve em
todas as situações: magnificente, inexplicável, absurdo, ensurdecedor…
E falta um cientista para introduzir
mais profundidade ao dizer: “A matemática é o alfabeto com o qual Deus escreveu
o Universo”. Galileu Galilei. Temos então o grande arquitecto, que uma vez
entregue a obra sai de cena.
Em leitura do livro de poesia do meu
amigo José Manuel Barroso, jornalista e poeta tardio, ele escreveu este verso: Deus
nem sempre está.
Enfim, não terá havido grande
homem, e agora obrigatório dizer grande mulher, que não tenha algo a
partilhar. É isso, deus ausente intriga até os mais insuspeitos responsáveis religiosos...
o antigo papa Bento XVI, em Auschwitz, perguntou: “meu Deus, meu Deus, onde
estavas quando isto aconteceu?”. É claro que isto é uma grande crítica,
mormente vinda de quem vem! E lá há muitos séculos atrás aqueles padres
portugueses, apóstolos, pregados nas cruzes em praia japonesa, torturados por divulgarem
a fé cristã, morrendo aos poucos, nunca esperavam o abandono a que foram
votados, e acabaram por duvidar da existência de Deus.
Talvez mal-educado na infância aprendi
que Deus tem rosto humano, com ar severo e longa barba e cabeleira. Era o Deus-Pai
castigador que assustou muitos jovens e muitos velhos. Os adultos não, porque
se iam esquecendo Dele, numa aprendizagem ao longo da vida que os libertava do
estado de pecado. E da respectiva confissão e também da pena cobrada.
Por isso quando me vêm dizer que Deus
está por aqui entre nós, nos tais detalhes, etc., se eu posso senti-Lo num
certo momento, em que Ele põe a mão por baixo, logo sinto a sua falta quando
Ele fica com a mão no bolso.
“Cá se fazem, cá se pagam”, esta
pérola da sabedoria popular, significa afinal que os pecados que aqui se
cometem aqui se pagam. Ou seja, não se vai arder no inferno porque o inferno é
aqui! Pois… o céu também!
Num Domingo destes o realizador de
cinema António Pedro Vasconcelos mandou-me um sms a perguntar se podia
ligar. Liguei-lhe e disse-lhe que sim, a qualquer momento, pois não ia à missa.
Respondeu ele: eu também não porque sou ateu. Respondi eu, que não era
suficientemente sabido para ser ateu e era, por isso, agnóstico. Disse ele que
isso era arranjar dois mistérios, o da criação do mundo e o do Deus necessário
para o criar e que ele APV prefere ficar só com um mistério. Aqui está uma boa
razão para se ser ateu, mas não me convenceu.
Finalmente Cristo na cruz, morrendo
aos poucos, murmurou: “Pai, Pai, porque me abandonaste?” E eu, quem sou eu
para dizer, perguntar, o que quer que seja que importe? Ora, não
dizem que todos somos filhos de Deus? E o que é que eu tenho para
perguntar a Deus? Sei lá, só me ocorre perguntar porque é que a
gente não se encontra? Mas sinto aí o perigo de uma frase
armadilhada. Pode Ele chamar me já! Continuo então à espera de Godot,
sabendo de antemão que, na peça, Godot não veio.
CNX2SET23
JG82
[1] Dias
depois entrava na sua casa o médico especialista, sumidade na oftalmologia que
o sentenciou de cegueira inapelável. Mal saiu o médico ouviu-se um tiro e
Camilo deixou de existir.
[2] Recorri
a diversas IA para me darem algumas notas deste diálogo histórico, mas
responderam que para tal não estavam habilitadas! Há gravações na RTP destes
diálogos, mas a Inteligência Artificial ainda não está nessa onda!
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