segunda-feira, 4 de setembro de 2023

À ESPERA DE GODOT

 

JORGE  GOLIAS


Recorrentemente volto ao tema sempiterno, como voltam todos os que andam por este mundo, escrito, falado, ou tão só imaginado. Em monólogos, pensamentos mais íntimos ou até diálogos públicos como foi o de Saramago com o então cardeal-Patriarca, Porfírio. E por este caminho abaixo, porque é sempre a descer, vou coleccionando pérolas como: Deus está nos detalhes (tem graça que o diabo também!), os insondáveis caminhos de Deus, Deus não dorme, Deus omnipotente, Deus omnipresente, Deus omnisciente, Deus todo-poderoso, castigo de Deus, Deus e o Diabo.

“Ao menino e ao borracho põe deus a mão por baixo”, lá diz o ditado popular. Mas Deus nem sempre está! E muitas vezes o menino esborracha-se.

A ideia de chegar perto de Deus pelo despojamento é tão antiga como Sócrates, pois foi ele que disse: “quem deseja menos coisas está decididamente mais perto dos deuses”. Muitos o associaram ao infinito do Universo, mas, curiosamente, Einstein disse: “existem duas coisas infinitas: o universo e a tolice dos homens”. Esqueceu-se de Deus!

Nietzsche, o niilista mais completo: ontológico, porque negava a existência de qualquer realidade substancial, crítico, porque negava a possibilidade da verdade, ético, porque não aceitava nenhuma norma moral, e político porque negava a necessidade de Estado, dizia então que o reino dos céus é um estado do coração. Afinal não era tão radical como parecia! E a resposta traz-me à memória o pensamento de Rainier Maria Rilke (cuja obra é muito marcada por uma percepção mística de Deus e da morte) primeiro nas suas Cartas a um Jovem, onde com uma paciência de deus vai respondendo a um jovem poeta de forma a educá-lo para a vida e quando ele lhe diz que perdeu a fé em Deus, ele lhe responde se a terá perdido ou se nunca a teve! Segundo, nas suas Histórias do Bom Deus onde em muitas pequenas histórias vai explicando como se deve ver Deus por entre a Humanidade: nas crianças, nos pobres, nos sofredores. Porém, não era esta a resposta que eu queria encontrar. Eu queria encará-lo!

Voltaire é citado sobre Deus como tendo dito: “Cumprimentamo-nos, mas não nos falamos!”.

O romance mais conhecido a respeito de ter fé e se perder a fé e se ter voltado a ela na hora da morte, é “O Drama de João Barois”, 1913, de Roger Martin du Gard, um Nobel francês (m.1958), que marcou todas as gerações da primeira metade do séc. XX. Digo-o eu que sei do que falo e, mais tarde, ouvi-o dizer a dois mais velhos: Mário Soares e José Fernandes Fafe (que conheci em Cuba, como embaixador), que citaram este livro como um dos que mais os marcaram na juventude. Jean Barois, um católico fervoroso, nasceu na província, migrou para Paris, e rapidamente radicalizou, liderando um movimento de crítica e luta contra a igreja, por razões científicas e de racionalidade. Encurtando, depois de uma vida de luta radical, líder incontestado, adoeceu, regressou à terra e agonizou. A expectativa de todo o mundo era a de ver se ele resistia ao apelo religioso na ponta final, no receio de O encontrar e ter de O ver e ouvir. Jean Barois, no seu leito de morte, após uma lenta agonia e já in extremis pediu então para ser confessado!

Guerra Junqueiro, que a certa altura do seu percurso intelectual renunciou ao catolicismo, e escreveu os maiores horrores anti-clericalistas do tempo, no seu leito de morte disse: “Dava toda a minha glória para não ter saído do catolicismo”. Quem recolheu estes momentos finais de GJ foi Raúl Brandão nas suas

Anos antes de GJ, em 1890, Camilo punha termo à vida depois de ter buscado toda a ciência disponível para lhe curar a cegueira, mas não sem antes se deixar também tentar por um acto de fé: em resposta a uma carta do padre Sebastião, mandou escrever: “Comovido até às lágrimas, ouvi ler a sua carta e senti fazer-se a luz da esperança na minha alma em trevas (…) Cresce o meu agradecimento quando vejo V.ª Ex.ª recorrer ao poder divino para que se opere o milagre que a ciência não fez nem poderá fazer. Eu tenho muita confiança nas suas preces, acompanhadas da voz inocente dos seus filhos adoptivos”. Pois nem Deus lhe valeu! Ou Deus não lhe perdoou?![1]

Amin Maalouf (1949) escritor líbano-francês desde 1975, de família católica, superpremiado e supertraduzido, questionava Deus assim: “Que homem nunca transgrediu a Tua Lei? Diz-me!”. Uma vida sem pecado que gosto tem? Diz-me!”. Se punes com o mal o mal que eu fiz, qual é a diferença entre Tu e eu? Diz-me!”

Saramago procurou-O, viveu a angústia da sua ausência, e zangou-se por não O encontrar. Ficaram célebres os diálogos entre o ateu (?) Saramago e o católico Cardeal-patriarca Porfírio. Um embate, por vezes quase telúrico, mas de tal forma elevado que ambos estes personagens antitéticos acabavam sempre por compreender e respeitar as suas opiniões, ainda que muitas vezes inconciliáveis[2].

Há os que andam com Deus e há os que nunca estiveram com Ele. Eduardo Lourenço cruzou se com Ele na música clássica mais sublime. Mas seria apenas uma suspeita de que Ele surfaria aquelas ondas. Voltaire foi sarcástico dizendo algo como “o sacana não me fala” e o arquitecto brasileiro Óscar Niemeyer, que não acreditava na sua existência, e já perto do fim, a perguntas sobre se o viesse a encontrar na outra vida, respondeu que “isso seria uma agradável surpresa”. Ou seja, o arquitecto não era ateu, era agnóstico, pois esta resposta admite a existência.

Eduardo Lourenço, que cedo perdeu a fé, escreveu algo que me toca também a mim de perto: "Cristo não disse que vinha salvar a humanidade como um mágico, mas veio convencido de que a humanidade se salvaria através do amor que ele portava em si mesmo. Tenho na referência crística a referência fundamental da minha educação e da minha maneira de ser”.

Depois do despojamento muitos convocam o silêncio como sinal da presença de Deus: “Em todo o Universo, nada existe de mais parecido com Deus, do que o silêncio”, Eckhart. Pois, o silêncio serve em todas as situações: magnificente, inexplicável, absurdo, ensurdecedor…

E falta um cientista para introduzir mais profundidade ao dizer: “A matemática é o alfabeto com o qual Deus escreveu o Universo”. Galileu Galilei. Temos então o grande arquitecto, que uma vez entregue a obra sai de cena.

Em leitura do livro de poesia do meu amigo José Manuel Barroso, jornalista e poeta tardio, ele escreveu este verso: Deus nem sempre está.

Enfim, não terá havido grande homem, e agora obrigatório dizer grande mulher, que não tenha algo a partilhar. É isso, deus ausente intriga até os mais insuspeitos responsáveis religiosos... o antigo papa Bento XVI, em Auschwitz, perguntou: “meu Deus, meu Deus, onde estavas quando isto aconteceu?”. É claro que isto é uma grande crítica, mormente vinda de quem vem! E lá há muitos séculos atrás aqueles padres portugueses, apóstolos, pregados nas cruzes em praia japonesa, torturados por divulgarem a fé cristã, morrendo aos poucos, nunca esperavam o abandono a que foram votados, e acabaram por duvidar da existência de Deus.

Talvez mal-educado na infância aprendi que Deus tem rosto humano, com ar severo e longa barba e cabeleira. Era o Deus-Pai castigador que assustou muitos jovens e muitos velhos. Os adultos não, porque se iam esquecendo Dele, numa aprendizagem ao longo da vida que os libertava do estado de pecado. E da respectiva confissão e também da pena cobrada.

Por isso quando me vêm dizer que Deus está por aqui entre nós, nos tais detalhes, etc., se eu posso senti-Lo num certo momento, em que Ele põe a mão por baixo, logo sinto a sua falta quando Ele fica com a mão no bolso.

“Cá se fazem, cá se pagam”, esta pérola da sabedoria popular, significa afinal que os pecados que aqui se cometem aqui se pagam. Ou seja, não se vai arder no inferno porque o inferno é aqui! Pois… o céu também!

Num Domingo destes o realizador de cinema António Pedro Vasconcelos mandou-me um sms a perguntar se podia ligar. Liguei-lhe e disse-lhe que sim, a qualquer momento, pois não ia à missa. Respondeu ele: eu também não porque sou ateu. Respondi eu, que não era suficientemente sabido para ser ateu e era, por isso, agnóstico. Disse ele que isso era arranjar dois mistérios, o da criação do mundo e o do Deus necessário para o criar e que ele APV prefere ficar só com um mistério. Aqui está uma boa razão para se ser ateu, mas não me convenceu.

Finalmente Cristo na cruz, morrendo aos poucos, murmurou: “Pai, Pai, porque me abandonaste?” E eu, quem sou eu para dizer, perguntar, o que quer que seja que importe? Ora, não dizem que todos somos filhos de Deus? E o que é que eu tenho para perguntar a Deus?  Sei lá, só me ocorre perguntar porque é que a gente não se encontra?  Mas sinto aí o perigo de uma frase armadilhada. Pode Ele chamar me já! Continuo então à espera de Godot, sabendo de antemão que, na peça, Godot não veio.

CNX2SET23   

 JG82



[1] Dias depois entrava na sua casa o médico especialista, sumidade na oftalmologia que o sentenciou de cegueira inapelável. Mal saiu o médico ouviu-se um tiro e Camilo deixou de existir.

[2] Recorri a diversas IA para me darem algumas notas deste diálogo histórico, mas responderam que para tal não estavam habilitadas! Há gravações na RTP destes diálogos, mas a Inteligência Artificial ainda não está nessa onda!

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