Alberto Gonçalves - Observador
15 maio 2021
Por decisão própria a
liberdade não cabe no futuro dos portugueses, que estão a ficar mais pobres,
mais oprimidos e, para cúmulo, mais resignados.
Poucos reclamam. Em breve
talvez nenhum o possa fazer
João Galamba, um portento
que servia o “eng.” Sócrates na internet e hoje serve o dr. Costa no governo,
chamou “estrume” ao “Sexta às Nove”. Fez bem. O programa de Sandra Felgueiras é
dos raríssimos produtos televisivos que ainda ousa beliscar o gabarito de quem
manda, uma insolência intolerável na jovem República Popular Portuguesa.
Felizmente, as insolências têm os dias contados. Não tarda, os Galambas desta
vida não precisarão de perder tempo e paciência com insubordinações pela
simples razão de que as ditas serão punidas – e, com certeza, evitadas – por
lei.
A reboque de um “Plano
Europeu de Ação contra a Desinformação”, maravilha que só por si prometia, o
prof. Marcelo, um dos melhores presidentes do mundo, promulgou no passado dia 8
a “Carta de Direitos Humanos na Era Digital”, de facto o regresso formal da
censura. Claro que, dado o nível de submissão do nosso “jornalismo”, já
praticamente não havia o que censurar. Mas não convém facilitar.
A “Carta de Direitos
Humanos na Era Digital” não facilita: a liberdade de expressão deixa de ser um
direito ou deixa de ser humana.
O documento é um primor.
Após cinco artigos repletos de treta “ecuménica” e analfabeta, chega,
naturalmente, o Artigo 6º.
Diz assim, no ponto 1:
“O Estado assegura o
cumprimento em Portugal do Plano Europeu de Ação contra a Desinformação,
por forma a proteger a sociedade contra pessoas singulares ou coletivas, de
jure ou de facto, que produzam, reproduzam ou difundam narrativa considerada
desinformação, nos termos do número seguinte.”
À primeira vista, isto
parece feito para combater as patranhas que o governo nos atira para cima. Não
é. É justamente o oposto: o governo reserva-se o poder de nos atirar patranhas
sem arriscar o contraditório, a que com alguma graça chama “desinformação”.
O ponto 2 desenvolve:
“A censura terá somente
por fim a perversão da opinião pública na sua função de força social e deverá
ser exercida por forma a defendê-la de todos os factores que a desorientem
contra a verdade, a justiça, a boa administração e o bem comum.”
Ai, desculpem que esta
era a cartilha do Estado Novo.
Eis a cartilha do Estado
Novíssimo, que se limita a rasurar “censura”, palavra feia, e faz “copy and
paste” do resto:
“Considera-se
desinformação toda a narrativa comprovadamente falsa ou enganadora criada,
apresentada e divulgada para obter vantagens económicas ou para enganar
deliberadamente o público, e que seja suscetível de causar um prejuízo
público, nomeadamente ameaça aos processos políticos democráticos, aos
processos de elaboração de políticas públicas e a bens públicos.”
Antes que se desate a
festejar o fim das trafulhices governamentais, susceptíveis de causar prejuízo
público e ameaça aos processos políticos democráticos, eu traduzo o jargão
socialista para português:
“Considera-se
desinformação todo o escrutínio das mentiras perpetradas pela oligarquia
instalada, etc.”
Em suma, contestar o PS
passa a ser crime. Até aqui, era apenas uma impertinência inconsequente – como
os sumiços de Manuela Moura Guedes, Camilo Lourenço e Ana Leal da televisão, e,
no caso de um humílimo colunista, a expulsão do “DN” e da “Sábado”.
No referido Artigo 6º, a
sabuja no cimo do bolo é a matéria do ponto 6:
“O Estado apoia a criação
de estruturas de verificação de factos por órgãos de comunicação social
devidamente registados e incentiva a atribuição de selos de qualidade por
entidades fidedignas dotadas do estatuto de utilidade pública.” Leia-se o PS
subsidia uns compinchas para corroborar a propaganda.
E o “Polígrafo” terá
concorrência feroz.
Claro que é injusto
responsabilizar unicamente o PS. Por falar em partidos, nenhum votou contra a
dita lei. PS e PAN apresentaram-na, PSD, BE e CDS votaram a favor e o PCP, o Chega
e a IL abstiveram-se.
Ou existem parlamentares
incapazes de compreender o perigo nas entrelinhas de um texto primário, o que é
uma hipótese, ou todos os deputados acham razoável que se torture a verdade até
que esta confesse e se adapte ao discurso oficial. Quem não tinha percebido,
talvez perceba agora os resultados das sondagens (e, daqui em diante, das
eleições): escolhe-se um partido por tique ou tradição, mas no fundo é
indiferente. O relativo consenso nos atropelos à civilização a pretexto da Covid
foi um indício.
A unanimidade perante a
imposição da censura é a confirmação de que entramos num regime de partido
único, com siglas distintas para fingir pluralismo. As dissensões ficam-se pelo
acessório, dos ciganos à TAP, do sr. Cabrita ao funcionamento das escolas. No
essencial, o respeito pela pobre Constituição e, sobretudo, pela democracia não
preocupa ninguém.
E “ninguém” inclui o
bom povo, que há cinco anos assiste com pacatez ao advento da ditadura.
Evidentemente, “ninguém” admite caminhar para aí, por muito que os passos sejam
largos e evidentes. Além de maior flexibilidade nas contas, o que distingue o
socialismo do salazarismo é a impostura lexical: pratica-se a coisa sem a
designar enquanto tal. À semelhança da censura, a ditadura é um conceito
antipático cuja aplicação, à imagem da reverência parlamentar, merece a
aprovação da maioria. E, pelos vistos, a abstenção dos que sobram.
Mesmo que a forma o
tente, o conteúdo não engana.
Por decisão própria, a
liberdade não cabe no futuro dos portugueses, que estão a ficar mais pobres,
mais oprimidos e, para cúmulo, mais resignados. Poucos reclamam. Em breve,
talvez nenhum o possa fazer.
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