Observador, 16 abr 2021
A grande
ameaça à nossa Democracia não é a corrupção, nem o compadrio, nem as injustiças
da Justiça, mas os “populistas de extrema-direita”, que arranjam todos os
pretextos para manipular o povo.
A peça Catarina
e a Beleza de Matar Fascistas, agora no Teatro Nacional Dona Maria,
gira à volta de uma família de resistentes antifascistas que tem por tradição
matar um fascista por ano. Não vi a peça, mas conheço a tradição – que é tudo
menos fictícia.
Os
comunistas podem não comer criancinhas ao pequeno-almoço, como nos elucidou, em
livre divagação sobre a imbecilidade das direitas, o Conselheiro (não o Acácio,
mas o de Estado), mas a verdade é que passaram todo o século XX a matar
fascistas.
Mataram
muitos em Espanha, em 1936. Fascistas ou os que se lhes afiguraram fascistas.
Mataram José António Primo de Rivera, que era falangista, Ramiro
Ledesma Ramos, que era mesmo fascista, Ramiro de Maeztu, que era
tradicionalista, Calvo Sotelo, que era da direita nacional-conservadora;
massacraram presos em Paracuellos del Jarama, fuzilaram mais de sete mil
bispos, padres, religiosos e religiosas (desde Diocleciano que não se
matavam tantos cristãos em tão pouco tempo, como nesse Verão de 1936); e
mataram militares e civis das direitas, que expeditamente transformaram em
“fascistas” para os poderem matar em beleza e em boa consciência.
De Lenine a Estaline – a tradição eslavófila
Diga-se em
abono da verdade que, na peça que está agora no Dona Maria e que se passa no
Ano da Graça de 2028, a família que cumpre a tradição de matar o seu
fascistazinho anual desde os tempos do salazarismo é subitamente acometida por
problemas de consciência. Pelos vistos pela primeira vez em 2028. Será lícita a
violência, mesmo que seja para defender a Democracia? Deverão “os bons” matar
“os maus” para salvar o mundo e as amplas liberdades democráticas? Isto porque
na esquerda doméstica, feita quase só de Catarinas boazinhas, mais cedo ou mais
tarde, até os mais tradicionalistas são acometidos por problemas de
consciência. Talvez lá para 2028 a nobre dúvida venha também a assaltar o deputado
do PS que teve muita pena que o 25 de Abril não tivesse visto “sangue” e
“mortos”.
Seja como
for, semelhantes dilemas não perturbavam os verdadeiros comunistas, os puros e
duros: quando se tratou de fazer a colectivização, Estaline não teve problemas
de consciência e matou à fome quatro, cinco, seis, sete milhões de camponeses
(o tal Holodomor que, do alto do seu observatório televisivo,
o Conselheiro desconsidera com um irónico trejeito de boca).
E, para não
quebrar a tradição, quando lhe começaram a faltar fascistas, reaccionários,
Kulaks, camponeses, para matar, quando já não tinha sequer mencheviques, o que
fez o “Pai dos Povos”, o “Corifeu da Ciência”, o “Arquitecto do Comunismo”, o
“Jardineiro da Felicidade Humana”? Voltou-se para os que não eram tão bons
comunistas como deviam ser, convertendo-os, mais uma vez, em “fascistas”. Fê-lo
com todo o à-vontade, pois no mundo de tábua-rasa que antecede o mundo
perfeito, no mundo sem igrejas, sem propriedade privada, sem sociedade civil,
só com Partido, os chefes, que têm na mão o Partido, têm também o poder
absoluto, que vão usando, mais ou menos criativa e demencialmente, quais
Calígulas ou Neros.
A morte é bela
Macbeth, um
modelo de tirano violento e assassino, tem remorsos e sonhos terríveis. Os grandes
líderes comunistas do século passado, Lenine, Estaline, Mao, Pol Pot,
Ceausescu, Mengistu, não eram sequer atormentados pelos espectros das suas
vítimas. E como o poderiam ser, se lutavam por um mundo melhor e por uma
humanidade perfeita e as suas vítimas eram todas fascistas ou qualquer coisa de
equivalente? Para eles, como para a família de Catarinas antifascistas do Dona
Maria, matar era uma beleza.
Nos últimos
dias da Segunda Guerra Mundial, o festival de “matar fascistas” esteve muito
concorrido no Norte de Itália. E aí havia fascistas autênticos para matar. Os
resistentes e os comunistas multiplicaram-se à medida que a guerra e as tropas
aliadas iam expulsando os alemães, e a guerra civil entre os combatentes da
República Social Italiana do Norte e os partigiani escalou em
violência.
E mataram o
“fascista nº 1”, Benito Mussolini, com a sua companheira, Clara Petacci. Mais
uma vez, fizeram-no em beleza, pendurando-os pelos pés em plena cidade de
Milão. Depois, mataram mais umas dezenas de milhares, pelo norte de Itália. Em
França, onde o número de resistentes se multiplicou depois do Desembarque da
Normandia, e sobretudo no pós-guerra, os comunistas aproveitaram a libertação
para eliminar, não só colaboracionistas, mas gente da direita católica, monárquica
e conservadora. Todos fascistas, claro. E os primeiros resistentes tinham sido
de direita, como o general De Gaulle e os militares que o acompanharam em
Londres, ainda os comunistas colaboravam com as forças de ocupação alemã (entre
Junho de 1940, a entrada da Wehrmacht em Paris, e Junho de
1941, quando Hitler invadiu a Rússia)… Mas isso pouco importa, varrido que foi
para debaixo dos sofás da História, em cuja reescrita se especializaram.
O Grande Salto em Frente: da Revolução Cultural
ao Activismo Tofu
Sempre rumo
a um mundo melhor – e sempre procedendo ao saneamento de fascistas que os
mundos melhores exigem –, Mao lançou em 1966 a grande Revolução Cultural
Proletária, soltando por toda a China milhões de Guardas Vermelhos,
voluntariosos estudantes que, estimulados pelo Livro Vermelho, se
dedicaram a prender, a insultar, a humilhar, os mais velhos – os pais, os
professores e todos os inimigos reais ou imaginários do Presidente Mao. E o
paranóico frenesim propagou-se. No Camboja, com Pol Pot, cumpriu-se no maior
genocídio da História, em proporção: nada mais, nada menos que um terço da
população… Mas como resistir à beleza da tradição? E o que fazer quando um
terço da população se afigura claramente “fascista”?
À Europa, a
tradição chegou em versão folclórica, com os grupos maoistas, no Maio de 68. E
em Itália e na Alemanha, ao folclore seguiu-se a deriva terrorista.
Por cá, foi
quase só folclore, com uns julgamentos nas faculdades semi-ocupadas. Passei como réu
por um desses tribunais, em 1970. Uma fantochada de meninos do Teatro, um
“matar fascistas” em versão portuguesa, mas que representava bem o fanatismo
imbecilizante da ideologia assassina que lhe presidia. E com a Revolução,
outras Forças Populares viriam. E essas bastante mais letais do que teatrais.
Pois é,
comunistas, maoistas, anarquistas, radicais das várias igrejas e seitas
utópicas do bloco das esquerdas foram passando com distinção na nobre e bela
tradição de matar fascistas e, quando não havia fascistas para matar, passaram
a matar-se uns aos outros, chamando-se “fascistas”.
Na peça
agora em exibição, há a tal família alentejana que, desde a morte de Catarina
Eufémia, mata todos os anos um fascista; e o fascista do ano, como não podia
deixar de ser, preenche todos os requisitos – é sexista, racista, agressor,
assassino de mulheres, enfim, alguém de intrínseca e de verdadeiramente mau
(mas não Tsé-Tung).
Todos
sabemos que a grande ameaça à nossa Democracia não é a corrupção, nem o
compadrio, nem a estagnação, nem o alastrar da pobreza, real, moral e
intelectual, nem o funcionamento enviesado da justiça criminal e social, do
ensino, do acesso ao emprego e à informação; nem tão pouco a imposição de uma
linguagem e de um pensamento incontestáveis e de leis passadas à socapa como
moeda de troca para grupos radicais. Talvez por isso a distopia agora em cena
no Dona Maria se centre na grande ameaça que paira sobre nós, na verdadeira
ameaça, no Grande Medo: o inexplicável aparecimento do “fascismo”, dos “maus”,
que arranjam todos os pretextos para manipular o povo contra a Democracia.
Daí que se
imagine o poder em Portugal, em 2028, nas mãos de um partido populista, um
partido de extrema-direita que, como seria de esperar, preconiza e aplica
vários horrores, numa distopia imaginada à medida local, uma distopia que chega
ao poder por eleições. E que vai criar um Estado concentracionário, com
reservas para ciganos e imigrantes, controlo de opinião, e todo o rol de
horrores que se espera apenas e só de um “Estado fascista”. Mas que,
curiosamente, até hoje – além do Holocausto hitleriano, que durou o tempo da
guerra –, tem
sido o apanágio de Estados antifascistas – na Rússia, na China, no Camboja, na
Etiópia, na Coreia do Norte, até em Cuba.
Também
curiosamente, e fazendo as contas, se a fictícia família antifascista que está
em cena mata um fascista por ano desde 1954, já terá matado, ao tempo da acção,
74 fascistas em território português. Mais do que a Ditadura Militar e o Estado
Novo, de 1926 a 1974.
O espectáculo
parece fascinante e os problemas de consciência de Catarina excelentes, mas a
verdade é que, até hoje, os antifascistas já mataram muito mais do que os
fascistas – e fascistas em sentido estrito e em sentido lato.
E isto,
Catarina, é capaz de ter alguma importância.
Mas, enfim,
que sei eu? Matar fascistas não deixará nunca de ser belo. Ah, e os cenários, e
o guarda-roupa, e o Alentejo das ceifeiras, a evocar o cuidado guarda-roupa das
ceifeiras e dos ceifeiros do saudoso PREC! E ah, a mestria do inesperado
pormenor de uma t-shirt do Black Lives Matter, a
dar ao espectáculo um toque de modernidade e de activismo, entre os ecos de
Brecht e toda a mística da revolução! E o título em parangonas no coração da
cidade? A Beleza de Matar Fascistas, ali, com todas as letras…
ainda que não seja para levar à letra, mas tão só para funcionar como denúncia
do discurso de ódio (dos outros), como apelo à defesa das vidas (e das mortes)
que importam; enfim, como um hino à beleza e à urgência do “activismo”, a nova ficção
da revolução!
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