Os cravos já foram. A luta de classes também. A ciclovia lisboeta é o símbolo dos novos
tempos: não é usada; dificulta a vida a todos e é imposta por pessoas a quem pagamos carro de serviço.
25 abr 2021
HELENA MATOS - OBSERVADOR
Quantos ciclistas utilizam as ciclovias, em Lisboa? Não estou a referir-me
aos fins-de-semana ou aos feriados. Estou a pensar no dia a dia. Sim, quantas
pessoas vão de bicicleta para o trabalho? Ou fazer compras ao supermercado? Ou
ver o pai que está doente?
Lisboa está atravancada por pilaretes que delimitam umas faixas esverdeadas
onde, de segunda a sexta, passam algumas pessoas nas suas caminhadas, os
distribuidores de take away e de quando em quando um ciclista.
Não só porque os ciclistas são poucos mas também porque a maior parte deles se
obstina em pedalar nos passeios e no alcatrão. Nas ciclovias é que não.
As ciclovias em Lisboa são o sinal exterior do poder de uma casta que
vive numa bolha,
Uma bolha onde se fala muito de clima mas se faz de conta que em Lisboa os
verões não são arrasadores (as alterações climáticas não são para aqui
chamadas!): quantos de nós aguentamos pedalar sob a inclemência das
temperaturas que se fazem sentir entre Junho e Setembro, na capital?
Uma bolha exclusiva a gente que diz adorar a natureza e depois subestima a
topografia da cidade com colinas e mais colinas. Gente que acha que não tem de
prestar contas pela forma como gasta o dinheiro público, criando umas
estruturas, as ciclovias, que não correspondem a uma necessidade mas sim a um
capricho seu. Gente que não considera ser seu dever resolver os problemas
reais, como são a falta de parques de estacionamento ou a fraca qualidade dos
transportes públicos.
O inquérito que a EMEL leva a cabo junto dos “Homem Cisgénero, Mulher Cisgénero,
Homem Transgénero, Mulher Transgénero e Outros” para apurar o que
lhes desagrada no uso da bicicleta em Lisboa é bem sintomático deste estado de
autoritarismo de capricho: porque não interroga a EMEL os “Homem Cisgénero,
Mulher Cisgénero, Homem Transgénero, Mulher Transgénero e Outros” sobre o que
os leva a andar ou não andar de comboio suburbano? Se têm ou não receio de sair
na estação da Amadora à noite? Ou sobre os tempos de espera pelos autocarros?
Nada disso interessa à casta. Eles acham que os outros devem andar de
bicicleta e como tal esventram a cidade para desenhar nela as ciclovias.
Obviamente, elas, as autoridades, continuam a usar automóveis mas, tal como
acontece com o confinamento, as autoridades afirmam-se enquanto
autoridades não pelo acerto do que fazem mas sim pelas excepções que se
concedem a si mesmas. Ter poder é cada vez mais em Portugal sinónimo de viver
num regime de excepções dos regulamentos e normas que se impõem aos outros.
A construção das ciclovias gera neste momento situações grotescas na
avenida Almirante Reis, na avenida Lusíada ou junto ao IPO. Neste último caso,
entre espaço para táxis e para as bicicletas imaginárias, aos residentes da
zona resta-lhes estacionar os seus carros nas varandas das suas casas. Sim,
apesar da propaganda as pessoas continuam a ter automóveis. Porque na vida real
das pessoas reais, aquelas que têm de trabalhar, que têm filhos, netos ou pais
a cargo, essas pessoas que carregam sacos e saquinhos, que vão a dois ou três
sítios antes de chegar a casa, para elas andar de bicicleta não é a primeira
opção. E, sublinho, não têm de se sentir culpadas por isso.
Em 2021, os cravos já foram. A luta de classes também. Agora a casta aposta
no emergentismo (somos convocados a salvar o planeta mas não conseguimos
tratar dos problemas do nosso país) nas “identidades” (a mesma UE
que patrocina o inquérito da EMEL dirigido aos Homem Cisgénero, Mulher
Cisgénero, Homem Transgénero, Mulher Transgénero e Outros falhou com estrondo a
aquisição de vacinas para os seus cidadãos) e na propaganda de um sucesso
que cada vez mais tem dificuldade em iludir o sabor a falhanço. A
ciclovia lisboeta é um dos símbolos dos novos tempos: imposta por pessoas
a quem pagamos motorista e carro de serviço. não serve a quase ninguém e
dificulta a vida a todos.
PS. Chamava-se Stephanie. Tinha 49 anos. Acabava de chegar ao seu
local de trabalho: o comissariado de polícia de Rambouillet, uma localidade a
60 quilómetros de Paris. Um homem empunhando uma faca e
gritando “Allah Akbar” dirige-se para Stephanie. Faz-lhe dois golpes no
pescoço. Ela cai. Morre pouco depois. Aconteceu esta sexta-feira. A partir daí
cumpriu-se o guião para este tipo de ataques: o ministro francês do Interior,
Gèrald Darmanin, declarou a sua solidariedade às forças policiais que diz
defenderem os valores republicanos. Na véspera do atentado que vitimou
Stephanie, o mesmo ministro declarara a sua solidariedade republicana para com
os bombeiros atacados em Lille quando combatiam as chamas que consumiam uma
creche. Anoitecia quando o incêndio deflagrou numa creche localizada num bairro
popular daquela cidade francesa. Várias corporações dirigiram-se
para o local. Aí chegados os bombeiros foram atacados. A creche ficou
parcialmente destruída. O fogo era de origem criminosa.
Note-se que não há semana em que o ministro do Interior francês não se
declare consternado e não expresse a sua solidariedade perante as vítimas de
agressões, atentados e violências de toda a ordem. Quando há vítimas mortais
Macron visita a família dos falecidos. Como é da praxe em França as cerimónias
fúnebres decorrem com solenidade e frases barrocas.
Mas voltemos ao guião que invariavelmente acompanha estes casos:
rapidamente surgiu a explicação da “perturbação mental”. Não há atentado levado
a cabo pelos fundamentalistas islâmicos na Europa em que não apareça a tese da
perturbação mental. O rumo da psiquiatria na Europa é de facto um mistério:
para se desculparem os terroristas lança-se sobre os doentes mentais um estigma
de violência.
Por fim, temos o silêncio e a menorização por parte do mundo das notícias e
dos activismos. Ou mais rigorosamente por parte das redacções guionadas pelos
activismos.
Onde estão as feministas? E os activistas das causas acontecidas e por
acontecer? O assunto não lhes interessa.
Fora de França, a morte de Stephanie, 49 anos, mãe de dois filhos, passou
quase incógnita. Já ninguém se diz Stephanie. Há seis meses quando o professor
Samuel Paty foi degolado a escassos quilómetros do comissariado onde Stephanie
foi assassinada, ainda houve alguma comoção. Depois fez-se por esquecer e
quando em Janeiro deste ano um outro
professor veio denunciar o clima de medo e auto-censura imposto pelos
fundamentalistas naquela zona foi tratado como
lunático. Agora foi degolada Stephanie. Mas vamos fazer de conta que não
aconteceu nada.
Começámos por ter medo do outro. Agora temos medo da nossa própria sombra.
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