Helena Matos – Observador
1/11/2020
Será que o Papa telefonará a
agradecer ao bispo que em França ajoelhou empunhando um cartaz onde se lê “A
vida dos Cristãos Conta”, durante os minutos em que Simone, Nadine e Vincent
agonizaram?
No início, a cada atentado
proliferavam os Je suis. Depois os atentados passaram a incidentes e os Je suis
tornaram-se ninguém. A emoção deu lugar ao medo. Agora chegou a barbárie. No
desacerto crónico que mantêm com a cronologia alheia, os terroristas islâmicos
atacam agora nas catedrais. Ignoram que a Igreja passou a ONG e as catedrais a
destino turístico. O Ocidente simbolizado pelas catedrais já não acredita
sequer em si mesmo e é até com estupefacção que constata que, neste ano de
2020, algumas pessoas, numa manhã de Outubro rezavam dentro da catedral de
Nice. Ainda se estivessem numa acção de promoção do diálogo inter-religioso,
dessas em cuja escassez o bispo do Porto encontra a explicação para as acções
do terrorista de Nice, compreendia-se essa necessidade de recolhimento. Mas
simplesmente a rezar, às 9 horas da manhã, numa catedral católica… que
embaraço!
Será que o Papa Francisco
telefonará a agradecer a algum bispo que em França ajoelhe, empunhando um
cartaz onde se leia “A vida dos cristão conta”, durante os minutos que Simone,
Nadine e Vincent demoraram a morrer? (O Papa Francisco telefonou esta semana a
um bispo católico dos EUA para o felicitar por ter homenageado, juntamente com
alguns padres da diocese de El Paso, o cidadão afro-americano George Floyd,
assassinado pela polícia na cidade norte-americana de Minneapolis em 25 de
maio.)
Ou isso seria de imediato
apontado como populismo e exploração própria de extremistas? Aliás, começamos
logo por não saber quantos minutos estiveram a tentar respirar Nadine
Devillers, Vincent Loquès e Simone
Barreto Silva. Os seus próprios nomes e rostos mal são conhecidos à excepção
dos de Simone Barreto Silva: o facto de, já ferida, ter procurado refúgio num
restaurante onde pediu “Digam aos meus filhos que gosto deles” levou a que não
ficasse anónima, como aconteceu a Nadine que acabou sumariamente descrita como
“uma fiel de 60 anos”. Contudo Simone era negra mas para que a sua morte
gerasse indignação e cartazes onde se dissesse que a sua vida importava, Simone
deveria ter sido degolada por um europeu cristão e branco e não por um tunisino
muçulmano. Para mais Simone estava numa igreja católica. Não era migrante nem
refugiada. Era essa coisa fora de moda chamada emigrante. Em França procurou
trabalho. Tomava conta de idosos.
A despersonificação é uma
das regras que paulatinamente nos foi imposta quando os autores dos atentados
contam com a compreensão da esquerda: os atentados praticados em nome do Islão
passaram a incidentes em que as vítimas morrem em consequência de
esfaqueamentos. Realizados por quem? Pelas facas, claro. Pois se das vítimas
destes atentados pouco se sabe, dos terroristas ainda menos, tanto mais que em
muitos casos foram imediatamente apresentados como desequilibrados ou lobos
solitários.
A cada ataque as atenções
mediáticas centram-se nos discursos enfáticos dos políticos a condenar o que
definem invariavelmente como o mais hediondo atentado, obviamente se excluirmos
o anterior e os anteriores do anterior que também já tinham classificado como
os mais hediondos. Em França esta espiral de adjectivos nas cerimónias fúnebres
das vítimas de terrorismo cresce na exacta proporção do abandono a que são
votadas as populações e a memória dessas vítimas, mal é dobrada a bandeira,
recolhida a passadeira e o Presidente regressa ao Eliseu, cada vez mais um
palácio-cidadela.
Não por acaso, quando, a 16
de Outubro, a França acordava para o pesadelo da descoberta do corpo decapitado
de Samuel Paty, uma voz denunciava o desrespeito pelas vítimas e a submissão do
estado francês perante os terroristas. Essa voz é a de Didier Cornara, irmão de
Hervé Cornara, o primeiro francês a ser decapitado em França pelos terroristas
islâmicos (sim, as decapitações em França começaram em 2015, quando Yassin
Salhi decapitou Hervé Cornara). Pois como agora veio recordar Didier Cornara,
nenhuma das promessas que foram feitas aquando da morte do seu irmão foi
concretizada. Entre essas promessa contava-se a de um maior controlo dos
indivíduos classificados pelas autoridades como representando um perigo para a
segurança, os chamados “fichés S”: em 2015, ano em que o seu irmão foi
assassinado recorda Didier Cornara, existiam em França 5 mil pessoas
referenciadas como S. Yassin Salhi era uma dessas pessoas. Em 2020 serão mais
de 30 mil as pessoas que cabem nessa classificação das quais mais 8 mil (mais
precisamente 8312) estão classificadas como extremamente perigosas. Muitas
destas pessoas não têm nacionalidade francesa, o que não as impede de fazerem a
sua vida em solo francês, usufruírem dos mais diversos apoios sociais que
aquele país concede e sobretudo de beneficiarem de todos os proteccionismos
legais de modo a nunca serem expulsos. E como explicar que o monumento dedicado
a Hervé já tenha sido vandalizado três vezes? Ou que este sábado, 31, escassos
dois dias após o atentado da catedral de
Nice, tenha recomeçado a roleta do “é atentado ou não é atentado” quando se
soube que um padre ortodoxo foi baleado em em Lyon? Ou que em Nice, um cidadão
argelino tenha representado uma degolação diante dos passageiros da composição
ferroviária em que viajava? Ou que na placa de homenagem a Arnaud Beltrame, o
militar que no atentado islâmico que teve lugar em 2018 em Carcassonne se
entregou ao terrorista Radouane Lakdim para que este libertasse uma refém e
acabou morto a tiro por ele, não tenha ocorrido às autoridades francesas nada
de mais apropriado que culpar Arnaud Beltrame pela sua própra morte
declarando-o “vítima do seu heroísmo”?
Sim, como explicar isto?
Em França instalou-se a
barbárie. Para lá do bling bling Louis Vuitton do casal presidencial, mais os
“maires ecolos” que agora em nome da natureza partiram em cruzada contra a
árvore de Natal, a discussão política centra-se neste momento numa palavra. E
essa palavra não é islamismo, nem radicalização, nem sequer separatismo, termo
agora usado pelas autoridades francesas para dar conta da forma como
determinados grupos residentes em França não só vivem à margem das leis daquele
país como impõem o direito a fazê-lo. Não, a palavra que está no centro do dia
a dia francês é asselvajamento e dá conta de um fenómeno de que as decapitações
de Simone, Nadine, Samuel, Hervé, Hamel são apenas uma parte, visível e
hedionda mas parte.
A França é o país em que a
minoria segregacionistas da jihad com apoio e o silêncio do progressismo
ansioso de colher votos nesse mundo de ressentimentos, se impôs à maioria dos
muçulmanos tolerantes, de que fazem parte os donos do restaurante para que
Simone fugiu. Primeiro fizeram desaparecer os talhos que vendiam carne de
porco, depois as mulheres sem véu das ruas de certos bairros. Depois conseguiram
afastar das escolas públicas os alunos judeus e aterrorizar todos aqueles que
os enfrentam, como fez Mila, a jovem estudante lésbica que por ter escrito
frases como “L’islam est une religion de haine. Le Coran c’est de la merde”
acabou a ter de viver em anonimato e sob segurança. (Recordo que para esse
ícone do feminismo que é Ségolène Royal, Mila não deve ser usada como ícone da
luta pela liberdade de expressão porque, na sua opinião, Mila padece de falta
de respeito.)
A França é o país em que nas
periferias, nos chamados territórios perdidos da República, aqueles em que a
polícia não entra a não ser em momentos excepcionais e com aparato militar, se
banalizaram os ajustes de contas à catanada entre “comunidades” e os rodeos aos
carros da polícia. Em que se queimam anualmente milhares de carros, ora porque
o ano acaba, ora porque os clubes de futebol ganham, ora porque perdem, ora por
outra razão qualquer. Em que se cercam e atacam esquadras. Em que os guardas
prisionais ameaçam fazer greve se os presos não forem proibidos de ter
fritadeiras nas celas e consequentemente de usar óleo a ferver como arma contra
os guardas e outros presos.
A França é o país em que em
nome da tolerância e do combate ao discurso de ódio se instituiu a lei do mais
forte e se passou a viver sob o ódio. Para mais sem poder nomear esse ódio
porque de imediato se é acusado de islamofobia, xenofobia ou qualquer outra
fobia.
A França é o país em que em
nome da integração se pactuou com a tribalização.
A França é o país em que em
nome da liberdade de alguns se impôs uma ditadura sobre o pensamento, as
notícias e a própria realidade: o tribunal e o silenciamento foi o destino de
quem denunciou o que estava a acontecer nas escolas, nas ruas, nos transportes.
O livro “Territoires perdus de la République” que em 2002 dava conta do
crescente anti-semitismo, da islamização e do sexismo crescentes nas escolas da
região de Paris foi objecto durante anos e anos de um boicote por parte de
jornalistas e comentadores. Escritores como Eric Zemmour têm pago com agressões
nas ruas e multas ditadas pelos tribunais o não aceitarem a omerta que em
França envolve esta regressão civilizacional.
Os radicais islâmicos
aproveitaram melhor que ninguém esta duplicidade do estado francês. Mas não
foram os únicos: agora a França tem de enfrentar o aproveitamento que outros
países, como é o caso da Turquia, fazem desses radicais.
Macron, com a “grandeur” que
ainda resta, faz discursos e preside a funerais. O tempo dos arrebatamentos do
Je suis deu lugar a um terrível Je ne sais pas… Depois do combate às trevas do
Deus cristão e do fulgor das luzes nas cerimónias à deusa Razão, a França
descobriu-se só.
PS. Ao ver a histeria que se
apossou do jornalismo nacional em torno das eleições norte-americanas tenho a
propor duas coisas. A primeira é que se aproveite no solo pátrio o dinamismo
mostrado estes dias pelos jornalistas portugueses a vasculhar os EUA. Assim
talvez consigamos, por exemplo, ter umas reportagens sobre a forma como se
viaja nos transportes públicos de Lisboa e Porto e, se não for pedir muito,
averiguar a relação entre a sobrelotação que aí se verifica e a propagação do
Covid.
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