sexta-feira, 3 de julho de 2020

O todo poderoso Facebook


ANTÓNIO  MAGALHÃES
Técnico aeroespacial, Sheffield


Zeca levou os dedos, polegar e indicador, ao seu sempre tão característico bigode farfalhudo, e num gesto que lhe era bastante peculiar e quase uma imagem de marca muito sua, foi-o alisando de modo muito vagaroso e pensativo.
Zeca não é um homem gordo, mas como ele mesmo gosta de se autointitular, é cheiinho e bem nutrido. A barriga que sobressai em relação ao resto do corpo, e que ele de maneira galhofeira batizou como sendo a curva da felicidade, é como que uma denúncia flagrante dos seus hábitos diários de quem gosta de beber uns canecos e comer umas merendas, que apesar de tudo são, na sua maneira de ver as coisas, os melhores momentos que a vida lhe dá, e quanto a isso não há como o criticar ou lhe apontar o dedo. Afinal de contas, felicidade deveria ser o propósito de cada um de nós, sem que a felicidade de cada um possa ser a infelicidade de outrem.
“Eustórgio meu filho, - disse, - assim não está nada bem. Não se pode dizer tudo o que nos vem à cabeça…”
O filho interrompeu-o quase de maneira irritada.
Meu pai, - disse à medida que fazia um esforço para suavizar a voz que apesar de tudo tinha começado a frase quase num grito, - eu não digo tudo o que me vem à cabeça. Não sou assim tão irresponsável, ou estúpido. Quando falo, ou seja, neste caso quando escrevo, porque é a isso que o meu pai se refere, sei bem o que escrevo e como o escrevo…
Como se não o estivesse a ouvir, Zeca voltou a levar os dedos ao bigode para mais uma vez o alisar. Mas desta vez não o fez de maneira suave. Carregou no bigodaço farfalhudo como se estivesse a espremer algumas reservas do tinto que poucas horas antes estivera a entornar na taberna do Vitorino, e repetiu o que já havia dito.
“Eustórgio meu filho, assim não está nada bem… - e acrescentou, - o Facebook não serve para escreveres essas intelectualidades, meu filho. Ninguém te ouve, ninguém te vê, ninguém te lê, se o que tens a dizer se estende por mais de meia dúzia de frases…
O filho interrompeu o pai nos seus devaneios.
“Ora, ora, ora meu pai. O Facebook para mim não é uma janela de vaidades, muito menos um meio de expor o absurdo e o ridículo. Quando criei a página foi com a intenção de poder estar em contacto com alguns amigos que ou estão longe ou as vicissitudes da vida por vários motivos nos vai afastando de maneira presencial, e também, porque não, utilizá-lo como um meio de divulgação cultural.”
Eustórgio tinha como paixão, desde idade muito tenra, os estudos. Era o tipo de pessoa que gostava de saber sempre mais, e por esse motivo sempre dedicou grande parte da sua vida e do seu tempo aos livros e à paixão de estudar. Hoje era uma pessoa formada universitariamente, e apesar de tudo tinha uma personalidade, alem de bem vincada, imparcial e justa, e por esse motivo, porque era e sempre foi um lutador pela verdade e pela justiça, por muito estranho que possa soar, atraía mais inimigos do que amigos. No entanto, convém sublinhar que dos poucos amigos que tinha, eram esses dos bons e fiéis, e convém também na mesma frase sublinhar que, apesar de tudo tinha muitas pessoas que o admiravam pela sua coragem, algumas dessas pessoas inclusive no rol dos que o tinham como inimigo.
Todos lhe reconheciam as suas capacidades intelectuais, desde os mais bem formados culturalmente, aos mais humildes e com escolaridade mínima, em alguns casos até nenhuma, e era também desses mais humildes, de pouca ou nenhuma escolaridade, de quem colhia os elogios e a admiração mais sincera, muito embora, uma vez ou outra, esses que tão veementemente o elogiavam com um orgulho cheio de sentimento e emoção, de quando em vez, levados por certos comentários maldosos de quem se incomodava por certas verdades denunciadas nos textos de Eustórgio , não tendo eles discernimento para entender as maldades vindas das bocas dos que atingidos na ferida espalhavam o veneno numa tentativa de virar o bico ao prego, chegassem uma ou outra vez a dizer, “Ora, ora, às vezes também tem a mania que é muito fino e que arrota cultura pelos cantos da boca…”
Por vezes os mais fracos da moleirinha deixam-se influenciar pela murmuração que em qualquer caso é sempre maldosa, e a ser alimentada, não lhe cortando o mal pela raiz se espalha como um vírus.
Eustórgio tinha como hobby escrever uns artigos que depois de escritos os publicava na sua página do Facebook. Cedo percebeu que não há pior meio de comunicação e divulgação para publicar o que quer que seja, e que tenha mais do que meia dúzia de frases, mas mesmo assim, tinha como missão pessoal enaltecer a cultura, a verdade e a justiça, e em sua opinião, mesmo que dos muitos utilizadores da página, existisse pelo menos um que lesse os seus artigos, achava que já valeria a pena a insistência.
É preciso ser muito louco, ou muito corajoso, para insistir numa teoria dessas quando uma fotografia pessoal expondo vaidades, uma pequena frase aparvalhada por vezes, ou mesmo uma simples palavra como um ámen ou um aleluia, em poucos minutos colhia umas boas dezenas de manifestações de apreço, quando muitos dos seus textos, com conteúdos de valor cultural, passavam quase despercebidos. Era como quem fosse vender peixe ao mercado da roupa.
Mas mais absurdo do que isso eram os que lhe desejavam feliz natal, ou feliz aniversário, feliz páscoa e outras celebrações, como eram gentis, cordiais e amáveis, quando muitos deles não lhes saberia chamar pelo nome se o mesmo não estivesse escarrapachado junto das suas fotografias. E como muitos deles também, aos olhos dos frequentadores do Facebook, davam a impressão, a avaliar pelas saudações, de serem os melhores amigos de sempre, muito embora algumas caras ele as reconhecesse de outras ocasiões onde se haviam cruzado por mera casualidade, e delas o que conseguia lembrar era como sempre foi a indiferença com que se tratavam.
Estranho povo este que parece ter descoberto finalmente um mundo virtual que os absorve de tal maneira, que uma vez dentro dele se sentem como peixes na água. Só assim se poderá explicar a dualidade de tratamento que entre si têm quando se cruzam entre o mundo real e o virtual.
Por essas e outras razoes Eustórgio, no que ao Facebook dizia respeito ficava-se pelos textos que escrevia e que nele expunha. 
Eustórgio sempre foi imparcial e justo nos seus artigos, e por essa mesma razão alguns deles, especialmente aqueles que foram denunciando sacanices e aldrabices, principalmente do poder político, valeram-lhe algumas inimizades contra as quais sempre respondeu com a razão da verdade e da justiça, mas sabia muito bem que era um pequeno peixe a nadar num mesmo espaço partilhado por tubarões.
Talvez por essa razão, quando tentou partilhar na sua página do Facebook um dos seus últimos artigos lhe tivesse aparecido uma mensagem a dizer o seguinte,
“A sua mensagem não pode ser enviada porque inclui conteúdo que outras pessoas no Facebook reportaram ser abusiva”
Abusiva…? Eustórgio passou uma vez mais, uma última vez, os olhos pelo Facebook, pelos postes, pelos comentários, pelo conteúdo de algumas partilhas, pelas fotografias que compunham algumas dessas partilhas.
Sim, é bom comunicar com amigos, é bom encontrar alguns que de outra maneira talvez fosse mais difícil encontrar, e é bom que se possa partilhar e divulgar alegrias e boas disposições, às vezes até mesmo tristezas e desalentos, mas, talvez por azar ou estranha coincidência, o conteúdo do que Eustórgio via naquele momento no todo poderoso Facebook, fez com que encolhesse os ombros, num gesto de quem finalmente percebe que pregar no deserto pode ser um sinal de insanidade, levantou os olhos para o pai, e disse,
“Tem toda a razão meu pai…”
E de uma vez por todas, limpou a sua página do Facebook. Bateu com a porta e foi-se embora.
Dois anos depois…ninguém desse novo e todo poderoso mundo se havia apercebido da ausência de Eustórgio…
Caso para dizer que tomou a decisão certa.
(Retalhos do Quotidiano)

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