António Magalhães (em Sheffield) |
Carlos recostou-se na cadeira. Fez pressão com
as suas costas de encontro às costas da cadeira deixando-se quase deslizar por
ela alongando o corpo ao mesmo tempo que entrelaçava os dedos segurando firme a
nuca. A cadeira gemeu. Carlos expeliu com força o ar que prolongadamente havia
inalado e deixou-se quase moldar descontraidamente na cadeira. Estava cansado.
Quem o diz são os olhos que fixos no ecrã do computador lhe ardem avermelhados.
Carlos deixa escapar um
suspiro do qual quase nem se apercebe. Parece concentrado.
À sua volta um aglomerado
de bolas de papel amachucadas são a prova do seu cansaço, da necessidade de se
espreguiçar na cadeira e de nela deixar cair o corpo que se descontrai, e o
suspiro será a prova de que o ditado, “quem muito insiste sempre alcança” esta
certíssimo.
A frase estava pronta.
“Uma Santa Páscoa para todos. Aleluia.”
E se fossemos investigar
as bolas de papel amachucadas e atiradas para o chão, agora dispersas
desordenadamente à sua volta, perceberíamos o quão insistente na procura da
perfeição Carlos teve de ser, para chegar a resultado tão preciso.
Quando Carlos teve a
ideia de escrever esta frase que haveria de ficar exposta às mais variadas
críticas e reparos, sabia que para atingir a aprovação e a admiração e acima de
tudo a sua satisfação pessoal na quantidade de “Gosto” que a frase haveria de
receber, pois com essa intenção foi criada, teria de ser perfeito. O esforço é
compensado pela satisfação que dele se obtém.
Primeiro foi, “Boa
Páscoa”, mas isso, Carlos percebeu que não seria o suficiente para cativar uma
vasta multidão de utilizadores da página, assim que acabou de escrever a frase.
Sherlock Holmes haveria
de deduzir a ordem cronológica em que a frase chegou à sua conclusão final só
pelo amassar das bolas de papel, porque o volume de cada uma, nos trâmites de
dedução do famoso detetive indicar-lhe-iam os diferentes estados de espírito e
paciência com que foram amassadas à medida que a frase ia ganhando os seus
contornos finais. Elementar meu caro Watson.
E só de pensar que tudo
começaria por uma “A todos uma Boa Páscoa”. E Carlos percebeu nos escassos
milésimos de segundo logo após ter escrito a frase que se queria ver os “Gosto”
a cair como pão na padaria, um simples, “A todos Boa Páscoa” não serviria os
propósitos para os quais a mesma nascera. Simples de mais.
E depois, vieram
variantes da mesma frase. Que o digam os enchumaços de papel caídos ao acaso em
redor de Carlos, “Boa Páscoa”, “Páscoa Feliz para Todos”, “A todos uma muito
Boa Páscoa”, e muitos enchumaços depois a recompensa ao esforço concluído em
desvelo para tão meticuloso trabalho intelectual.
A frase foi “posta “no
Facebook na manhã de Páscoa por volta das 11 horas. Às 11 horas e dez minutos
tinha já cerca de 50 “Gosto”. Pouco antes do ponteiro do relógio bater as onze
e trinta a frase havia ultrapassado os cem “Gosto”, e para atestar o sucesso à
frase que com primor, mas acima de tudo esforço intelectual, Carlos havia
conseguido, com os mais de cem “Gosto” uma boa dezena de comentários. Pessoas
que tocadas pela sensibilidade de tão única maneira de chegar aos corações dos
mais sensíveis, não resistiram a dar o troco de volta.
Neles se contam os
amigos, muitos dos quais, nos últimos tempos não se têm dado ao trabalho de vir
dizer um simples olá. Também os conhecidos, aqueles que em tantas e tão
diversas ocasiões sempre optaram por ignorar. Mas também aqui se falam de
vizinhos que se percebem mais vezes por detrás das cortinas do que nos
contactos visuais à luz do dia, ou da noite que fosse.
Por volta do meio dia a
fasquia ia já em mais de trezentos “Gosto” e aqui incluem-se já o mais variado
leque de utilizadores, pedreiros, pintores, carpinteiros, jardineiros, trolhas,
gravidas, brancos e pretos para que se não venham queixar de descriminações ou
racismos muito embora não se saiba o que fazer com a falta de peles vermelhas
ou os amarelos, que na falta de uns sobejam outros.
No mundo real poucos são
aqueles que interagem com Carlos, de facto, nesta avalanche de “Gosto” e
comentários que foi inundando a sua página do Facebook, contar-se-iam pelos
dedos das mãos os que têm vindo a notar a presença de Carlos neste mundo real
de que se fala. Mas no mundo virtual há uma multidão que está com o Carlos
ombro a ombro, para o que der e para o que vier.
E Carlos que nem sequer
algum dia foi bonito, com um toque de sublime acuidade, num impulso que lhe
adveio do sucesso quase instantâneo à sua trabalhosa frase, como quem tivesse
prestado um imenso favor à literatura de ponta, surge-lhe pela uma da tarde,
quando os “Gosto” haviam quebrado todas as expetativas em números aos quais nem
sequer nos aventuramos a divulgar, eis que lhe surge mais uma brilhante ideia,
a de colocar, logo a seguir ao ultimo dos comentários em favor da sua frase, a
sua fotografia que em poucos segundos, como se fossem legendas em rodapé,
receberia prodigioso elogio, “Tão lindo” e outras coisas idênticas que só o
Facebook tem o privilégio de despertar nas pessoas semelhante manto de mornas,
quase quentes, empatias de uns para com os outros.
“Tão lindo”, Carlos…ele
que nunca foi bonito…
João Pedro Miguel
recostou-se na cadeira. Fez pressão com as suas costas de encontro às costas da
cadeira deixando-se quase deslizar por ela alongando o corpo ao mesmo tempo que
entrelaçava os dedos segurando firme a nuca. A cadeira gemeu.
João Pedro Miguel tem
razões para estar feliz. Há três dias que fez um poste no Facebook. Um texto
que fala de um mundo distraído enquanto que esse mesmo mundo se vai
desmoronando em volta das pessoas que o habitam, sem que elas disso se
apercebam. Um bando de idiotas fazem promessas de um mundo melhor, que são as
mesmas razões pelas quais, num passado não longínquo, eram o motivo da luta por
liberdades e garantias que fizeram o sofrimento dos muitos que por elas
lutaram. Muitos que sofreram na pele a persistência de uma luta constante que
viria a ser o garante das liberdades que hoje se disfrutam e as quais estão em
constante perigo de retrocesso. O povo aplaude e elogia Carlos, “Tão lindo”,
ele que nem sequer algum dia foi bonito. Trump, Bolsonaro, Erdogan, Viktor
Orban, Rodrigo Duterte…e assim vai o mundo, e assim vai a cultura da nossa
gente…
Finalmente e ao fim de
três dias o texto de João Pedro Miguel atingiu sete “Gosto”.
João Pedro Miguel sabe
que a esse numero vai subtrair dois que não leram o texto mas que por razões
familiares lhes parece bem fazer um clique no “Gosto”, três que o fizeram pela
amizade, um porque se distraiu e a razão para que João Pedro Miguel se encontre
feliz no dia de hoje…alguém leu de facto o texto…
Não é Páscoa…, mas que
porra…Aleluia.
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