Achei Pedro Passos Coelho um homem provavelmente justo
e evidentemente decente. Mesmo as pessoas que obviamente despreza são por ele
desprezadas com decência, e ridicularizadas com adjectivos justos.
Na quinta-feira, almocei com Pedro Passos Coelho.
Nunca tinha falado com ele, o que talvez seja inacreditável para os avençados
do PS. Os avençados do PS, que recebem favores ou salário para difamar terceiros,
não compreendem que se elogie, estime ou admire um político apenas porque o
julgamos merecedor do elogio, da estima ou da admiração. Há muito que, com
ocasionais e no fundo ligeiras ressalvas, Pedro Passos Coelho me merece tudo
isso, caso raríssimo numa pessoa do seu ofício. Claro que Pedro Passos Coelho
dispensa os meus encómios, já que as suas virtudes foram e continuam a ser
melhor exaltadas pela intensidade do ódio, ou medo, que lhe dedicam e pelo
carácter dos que exibem esse ódio. Ou esse medo. No desolador meio da política,
e no miserável meio da política nacional, Pedro Passos Coelho não é um homem
comum.
Pedro Passos Coelho pareceu-me um homem comum, embora
muito mais educado e muito mais sereno e muito mais resistente do que os homens
comuns. Durante anos, os anos em que governou, aconteceu-me imaginar o modo
como ele sentiria a fúria organizada e injusta que lhe dedicavam. Após duas ou
três horas de conversa, sou capaz de apostar numa resignação suave e, logo a
seguir, na indiferença. Estas coisas parecem estranhas à época em que um
primeiro-ministro reage às críticas de transeuntes oferecendo-lhes porrada.
Até sob padrões menos radicalmente boçais, Pedro
Passos Coelho é diferente: quando alguns dos portugueses lhe confiaram um país
em ruínas, e alguns dos portugueses restantes fizeram o possível por manter as
condições que determinaram as ruínas, Pedro Passos Coelho fez o impossível e,
simples e genuinamente, não ligou aos insultos e às ameaças. Entre sucessivas
sabotagens, seguiu o caminho que entendeu adequado à salvação de um pardieiro
que não agradece salvamentos. Das vezes em que hesitou no caminho, ou em que
mudou de direcção, ou em que falhou claramente, nenhuma terá sido por receio
dos bonecos amestrados que berravam a “Grândola” onde calhava.
Sempre suspeitei e agora estou certo de que Pedro
Passos Coelho possui o arcaboiço – ou o dom – necessário para conviver em
sincera paz com a impopularidade, ainda que uma impopularidade fabricada. Em
democracia, e para cúmulo uma democracia minada contra ele, não é uma proeza
insignificante: é a matéria de que se compõem os estadistas a sério, por cá, e
não só por cá, uma espécie próxima da extinção. Com ele, o exercício do poder
não se confunde com a troca de cuecas na praia ou com visitas programadas a
reboque do sentimentalismo canalha. Além disso, ao contrário de Sá Carneiro,
que conheci em criança, Pedro Passos Coelho não transmite “carisma”. Ao
contrário de Soares e Cavaco, que entrevistei há séculos, Pedro Passos Coelho
não emana sobranceria nem rigidez, respectivamente. Ao contrário de quase todos
os outros, Pedro Passos Coelho não inspira desconfiança, repulsa, depressão ou
vergonha. O que se sente em Pedro Passos Coelho é calma.
Num dos erros mais espectaculares da minha infalível
carreira de cronista, a princípio não tive qualquer esperança em Pedro Passos Coelho.
Comecei o almoço por aí, pela asneira de ter tomado a calma, e a paciência e a
polidez dele por tolerância para com os desastres do “eng.” Sócrates. O tempo
deu-lhe razão e embaraçou-me devidamente. Também é verdade que a sua paciência
com o “eng.” Sócrates não foi infinita, mas essa nem um santo a teria. Pedro
Passos Coelho não é um santo, ou um asceta. Achei-o um sujeito com graça, que
conta histórias com invulgar clareza e cuja técnica de demolir adversários
implica apartes subtis e venenosos, embalados por um sorriso discreto. Achei-o,
igualmente, um sujeito sem pingo de rancor. Mesmo as pessoas que obviamente
despreza são por ele desprezadas com decência, e ridicularizadas com adjectivos
justos. Achei Pedro Passos Coelho um homem provavelmente justo e evidentemente
decente.
É plausível, se formos optimistas, que Pedro Passos
Coelho não seja o único homem justo e decente da política nacional. É, sem
dúvida, o único com estatuto suficiente para devolver um simulacro de
civilidade a um regime afundado por brutos ou salteadores (isto se não
acumularem). Não é uma mera opinião: é um facto atestado pelo ressentimento que
desperta entre os pares que, hoje, claramente não tem. Na política e nas suas
metástases, consegue-se criar uma escala da pulhice em que o grau aumenta de
forma directamente proporcional à aversão a Pedro Passos Coelho. Sucede que ele
dispensa a aversão dos pulhas para se distinguir.
Não lhe perguntei se tencionava regressar (e se
perguntasse não diria aqui a resposta). Não sei se a progressiva degradação da
nossa vida pública permitirá sequer o seu regresso. Com azar, imenso azar, a
dignidade de Pedro Passos Coelho será um dia lembrada enquanto o último, e
invulgar, vestígio de um mundo que entretanto se afundou. Aliás, está a
afundar-se.
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