segunda-feira, 29 de abril de 2019

Contos Russos na “Biblioteca de Babel” de Jorge Luís Borges



Quando o editor Franco Maria Ricci passou alguns dias em Buenos Aires, na companhia de Jorge Luís Borges, sentiu-se motivado a propor-lhe a aventura de dirigir uma colecção de obras fantásticas que à maneira borgiana, se intitulou “A Biblioteca de babel” e foi um modelo de arte tipográfica e de requinte bibliográfico. Foram publicados uns trinta volumes de obras especialmente selecionadas e prefaciadas por este enorme escritor, natural da Argentina, com ascendência transmontana.
A Editorial Presença, começou a reeditar esta colecção em 2007, com as capas de origem. Em 2014 estavam já reeditados os “Contos Argentinos”. E a partir daí perdemos-lhe o rasto.
Em 2010, foram reeditados “Contos Russos”, cuja introdução assinada por Borges segue:







Introdução

JORGE LUÍS BORGES
Imaginamos fatalmente Dostoiévski (1821--1881) como um personagem de Dostoiévski. A sua vida comporta a pobreza, a conspiração, a condenação, a deportação na Sibéria, a humilhação, o álcool, o jogo, a epilepsia e, como a de todos os homens, a ventura e a desventura; mas estes factos, que parecem confirmar a nossa primeira impressão, anulam-se e agrupam-se num só: a sua vasta e múltipla obra literária. O típico herói de Dostoiévski passa da angústia à culpa, à confissão expansiva e ao arrependimento; não o imaginamos entregue dia após dia à complexa execução das invenções. Se Dostoiévski foi Raskólnikov, isso aconteceu na medida em que Shakespeare foi as Três Parcas ou Hamlet, ou que Cervantes foi Alonso Quijano, que queria tornar-se Dom Quixote. Vemo-lo através dos seus sonhos, que são, afinal, o que perdura do estranho destino do escritor. Dir-se-ia até que o nosso tempo atribui uma importância desmesurada às vicissitudes políticas; a burocrática e hierárquica Rússia que nos é mostrada nos livros de Dostoiévski não é forçosamente muito diferente da de hoje. Quando fala da estepe parece falar da pampa; as grandes e ramificadas famílias que imaginou poderiam ser as do Sul do nosso continente. A minuciosa burocracia, exaltada satiricamente, é o tema essencial da inacabada fantasia de O Crocodilo. O ambiente é de sonho, prestes a cair no pesadelo, mas não se afunda nos seus muitos abismos graças ao tom de humorismo e à inconsistência e vulgaridade dos protagonistas. O leitor suspeita de que Dostoiévski não saiba sair do seu crocodilo, o que explicaria que as suas páginas não tenham encontrado um desfecho e se tenham perdido em episódios específicos. É curioso que Rafael Cansinos-Assens, no prefácio à tradução espanhola, pareça não ter avisado que a obra é um fragmento. Prefigurando Kafka, a situação gira sobre si mesma e é efectivamente uma só, que vai revelando os caracteres. O mesmo sucede em Dom Quixote, que consta de uma única aventura com variações, que vão apresentando e aprofundando as almas de Alonso Quijano e de Sancho.
Pode ser considerada arbitrária a vizinhança, neste volume, de Andréev e de Dostoiévski. Deveria no entanto observar-se que os dois coincidem no ímpeto patético e na desconsolada visão de um mundo hostil. É habitual falar-se da polémica entre realismo e simbolismo. Esquece-se que estas escolas assumiram traços e significados diversos nos diferentes países e em cada caso. Leonid Andréev (1871-1919), foi, à sua maneira eslava, um devoto eminente de ambas as paróquias.
Ao realismo correspondem Savva e Anfissa; ao simbolismo, A Vida do Homem, Anátema, O Oceano e As Máscaras Negras. Escolhemos para este livro a história intitulada Lázaro. Em 1855, o escritor inglês Robert Browning tratara o mesmo tema numa curiosa e longa poesia. O Lázaro de Browning volta a descobrir, como uma criança apavorada, as coisas pequenas e evidentes deste mundo; o de Andréev, depois de passar pela morte, sente que aqui na terra tudo é inconsistente e que o aniquilamento é o fim. Desolado e aterrorizado, foge da companhia dos homens; no seu olhar atroz, que para os outros é insuportável, parece estar escrito o fim.
Esta história admirável, que pode, como se fosse um facto pessoal, modificar a nossa concepção do mundo, reflecte no seu espelho o doloroso destino de Andréev. Conheceu a pobreza de muito perto e foi perseguido pela vontade de se suicidar. O sucesso literário obtido por Os Sete Enforcados e por Abismo foi obscurecido pelas perseguições políticas que sofreu. Partidário da Revolução e incompreendido pelos companheiros, fugiu para a Finlândia, sob a ameaça de ser assassinado. Ali morreu pobre, como Lázaro, o seu protagonista, o seu duplo, desprovido de qualquer esperança.
Não é uma hipérbole afirmar que a última história que escolhemos é uma das mais admiráveis que a literatura nos pode oferecer. Em termos teológicos poderíamos dizer que o seu argumento essencial é a salvação pela graça, e não pelas obras. Mas esta definição abstracta corre o risco de profanar a segurança e o inesperado esplendor das últimas páginas.
Nos dois textos precedentes, o elemento fantástico é claro desde o princípio: Em A Morte de Ivan Illitch, de Lev Tolstói (1828-1910), a revelação sobrenatural chega ao fim, inevitável e surpreendente, como a última experiência de uma alma. Não nos devemos privar da leitura desta excelente história de Tolstói, tão merecidamente famoso, onde marcam encontro o conhecimento do homem e a perfeição literária.
Jorge Luis Borges
ttps://tempocaminhado.bl

4 comentários:

  1. Caro Sr. Armando, eu desenvolvo o trabalho de reunir e preservar toda a obra do escritor Leonid Andrêiev editada em português, no Brasil e em Portugal. Um dos poucos livros que ainda não consegui um exemplar é esta seleção de contos russos feita por J L Borges e editada pela Presença, em Portugal. Por acaso o Sr. tem um exemplar deste livro que esteja disposto a vender? Ou tem alguma indicação de onde eu poderia encontrar um? Agradeço sua atenção. Abs.

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  2. Meu caro Milton, apenas possuo este exemplar que comprei em 2010 para a minha biblioteca pessoal. Creio que a edição não está esgotada. A melhor forma de o adquirir é contactar a PRESENÇA: EDITORIAL PRESENÇA - Estrada das Palmeiras, 59 - Queluz de Baixo - 2730-132 Bracarena.
    E-mail: info@preseca.pt
    Internete: http://www.presenca.pt
    Abraço

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  3. Caro Sr. Armando, desculpe a demora em responder. Agradeço sua atenção. Esta edição está completamente esgotada. Há alguns anos tento encontrar um exemplar para aquisição, mas não consigo. Já fiz contato direto com a editora e nem eles têm uma exemplar disponível. Assim, se o Sr. souber de algum exemplar disponível para venda e puder me informar, eu agradeço. Grande abraço.

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  4. Muito bem, não tenho muito tempo, mas estarei atento. Se encontrar um exemplar, dir-lhe-ei.
    Abraço

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