30/3/2019, 0:03380
A opinião publicada não contesta o
pagode socialista, na medida em que: a) acha que o pagode é normal; b) acha que
o pagode é benéfico; c) espera vir a beneficiar do pagode; d) já beneficia do
pagode.
O poder das ilusões é uma coisa
maravilhosa. E sobretudo patética. Para não admitir o que de facto são, os
portugueses fingem-se convictos de que são “os melhores dos melhores”, citando
a ladainha humilhante do prof. Marcelo. O método é repetirmos com maníaca
insistência que somos insuperáveis nisto e naquilo, da bola aos chouriços, das
peúgas ao azeite. De tanto entoarem o mantra, alguns, coitados, chegam a
acreditar nele. Muitos, porém, permanecem ligeiramente cépticos: embora
proclamem a superioridade pátria nos “sectores” – sei lá – do mobiliário ou da
saúde, receiam no fundo estar errados e a fazer o que os clássicos da
Antropologia designavam por figura de urso. A conversão dos cépticos dispõe da
propaganda oficiosa, os “telejornais” que se encarregam, dia após dia, de
entrevistar governantes nas imediações de uma inauguração, ou estrangeiros nas
imediações dos Jerónimos, todos dispostos a confirmar as incontáveis virtudes
deste abençoado país. Se um casal de belgas gosta disto, quem somos nós para
discordarmos?
Quase literalmente, não somos ninguém. É
a nossa sorte. Dado que o mundo mal dá pela existência de Portugal, Portugal
costuma escapar ao escrutínio do mundo. Ambos beneficiam do arranjo. Excepto às
vezes. Às vezes, um acontecimento fortuito ou um tique exagerado desperta
atenções alheias e indesejadas. Às vezes, as notícias escapam ao controlo, ou
aos objectivos editoriais do falecido DN. Às vezes, a realidade espreita e
perturba as patranhas que nos oferecem e o idílio em que vivemos. A título de
exemplo recente, sugiro o documentário sobre o desaparecimento de Maddie
McCann, estreado na Netflix. Ali não há turistas seleccionados a louvarem a
comida e a hospitalidade e as “startups”: há ingleses que olham para Sul e
descobrem um território entregue a bárbaros, onde a polícia se destaca pela
espectacular inépcia e a corrupção genérica serve de cenário para apaixonantes
enredos. Em meia-dúzia de horas de programa, o mito do paraíso à beira-mar
afoga-se com esmero. Mas nada afoga as ilusões dos portugueses, os quais, bem
amestrados, tomam a crítica por um ataque movido a inveja. Não importa que, no
caso, a “inveja” seja tão fundamentada quanto a da banca suíça face à
estabilidade do BES.
Uma outra história actual e digna da
estupefacção “externa” é a endogamia governamental. Na sua infinita ingenuidade,
o povo garante que a família não se escolhe. A sério? O PS escolhe os
familiares que pode e, não satisfeito, nomeia-os para os cargos públicos que
não deve. Sendo engraçado que um dos argumentos contra a monarquia consista em
impedir a ascensão automática de mentecaptos, também é verdade que a situação
desta peculiar república, absolutamente trivial em exotismos marxistas, não é,
vá lá saber-se a razão, comum nas democracias civilizadas. É aliás inédita a
ponto de impressionar a imprensa espanhola, que habitualmente nos dedica a
quantidade de páginas que reservamos às Berlengas: o “ABC” fala numa “rede de
nepotismo sem precedentes em toda a Europa”, lembra a “rede de 27 pessoas com
vínculos familiares no exercício do poder” e refere que “a indignação tomou
conta do país vizinho”. Escusado dizer que se trata de uma série de calúnias, a
desmentir com urgência.
A primeira calúnia é considerar que
pertencemos à Europa, presunção que apenas funciona no momento de receber, com
maus modos, dinheiro alemão. Fora isso, uma fotografia colectiva do governo
basta para exibir não só os perigos da consanguinidade como uma tropa fandanga
que, na aparência e no conteúdo, dificilmente se sentaria na assembleia
estadual do Maranhão.
A segunda calúnia são os 27 parentes,
proverbialmente caídos na lama. O Observador já desenterrou quarenta e tal, e
não duvido que uma pesquisa distraída pelas subsecretarias e chefias de
gabinete alcance os 150. Além de que amanhã é um novo dia, e uma nova
oportunidade profissional para dezenas de filhos, esposos, genros, primos e
enteados dos vultos que nos guiam.
A terceira calúnia é a indignação que
alegadamente nos assola. Qual indignação? Salvo por umas dúzias de excêntricos,
a famosa “opinião pública” e a famosíssima opinião publicada não contestam o
pagode socialista, na medida em que: a) acham que o pagode é normal; b) acham
que o pagode é benéfico; c) esperam vir a beneficiar do pagode; d) já
beneficiam do pagode. Entre a cretinice e o oportunismo, compreende-se a
tendência do cidadão médio para a opinião informada. Se o “ABC”, o “El País” e
os jornais que calhar realizassem com competência o seu trabalho, perceberiam
que a notícia não é a rompante promiscuidade no governo: é a complacência de
uma sociedade em peso perante a promiscuidade e perante o resto. O espantoso,
na hipótese de ainda sobrar alguém que se espante, é a jovialidade com que os
portugueses se permitem ser enxovalhados e roubados às mãos de uma legião de
rústicos que nem possuem em manha metade do que lhes falta em vergonha.
Haverá, nos confins da Terra, populações
mais oprimidas. Ou mais ridicularizadas. Ou mais burladas. Não haverá nenhuma
que o aceite com este simulacro de orgulho. Nisso, e não nas peúgas ou no
azeite, somos mesmo os melhores dos melhores. Ou uma desgraça sem remédio,
consoante a perspectiva.
Nota de rodapé
O prémio “Uma Rotunda Em Cada
Cruzamento, Dois Multiusos Em Cada Esquina, Três Sacos Azuis Em Cada Mandato”
da semana vai para António Costa, com a frase: “O mundo seria muito melhor se
fosse governado pelos presidentes de câmara”.
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