quarta-feira, 31 de outubro de 2018

À hora de entre o cão e o lobo (conto de Henrique Pedro) - 1


JORGE LAGE

Meu tio Daniel, crente, temente de Deus e piedoso devoto de S. Francisco de Assis como era, dizia que até as pedras têm alma.
Das pedras duvido, mas daquele lobo com quem partilhei felizes momentos da minha infância encantada, fiquei com a convicção de que se a não tinha, alguém lha emprestara, ainda que por breves momentos.
Nos tempos em que esta história tem lugar Vila Nova de Monforte era um lugarejo perdido numa falda da Serra da Padrela, bem aconchegado de soutos, lameiros verdejantes e úberes linhares, aonde apenas se chegava a pé ou a cavalo, por veredas e caminhos carreteiros.
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HENRIQUE PEDRO
Excepcionalmente a velha furgoneta Ford de meu pai, do modelo dito “calças arregaçadas”, aventurava-se a galgar a serra envolta em nuvens de pó, rugidos, “ratés” e solavancos maiores que as montanhas, fazendo-se ouvir a quilómetros de distância, o que dava tempo a que a garotada da aldeia, mais lestos e silenciosos que a maravilhante máquina, me viesse esperar ao alto da Cruz.
Sujos e lanudos, lá apareciam o Acácio, o Carmim e o Valdemar que eu começava por fitar de soslaio, calado, desafiador, já a imaginar brincadeiras sem limites, por montes e vales, árvores e penedos.
Meu pai ia de volta à Terra Quente e ali ficava eu por largas temporadas entregue aos desvelos de minha madrinha Inocência.
Vivia-se de tudo que a terra dava, que era muito e inigualavelmente bom para os conceitos biológicos actuais: ar, água, batata, castanha, centeio, leite, boa saúde e santa liberdade. De que me restam saudades infinitas encerradas nas paredes do robusto casarão solarengo, originariamente presbitério construído por mãos godas convertidas que terá sido governado, nos primórdios, por um qualquer presbítero guerreiro, possivelmente também chamado Eurico. E que poderei muito bem ter sido eu noutra encarnação.
Meu irmão lobo, porém, que eu mesmo baptizara de Godo, sem saber a que onomástica canina fui buscar o nome, marcar-me-ia para sempre.
Fora-me oferecido por Frutuoso, velho criado de servir, que o roubara do ninho rodeado de silvedos e acolchoado de fetos, bem escondido no fojo mais profundo do Vale de Murilha, quando a Primavera despontava em sinfonia de flores silvestres e no chilreio de carriças e toutinegras.
Frutuoso, além do mais, garantiu-me que o resto da ninhada ficara intacta e que da refrega dos mastins com a mãe loba, interrompida ao primeiro assobio mal deitara as mãos à primeira cria, apenas resultaram arranhões de parte a parte. Isso bem o podia eu comprovar no focinho da cadela Salomé, que exibia comprido sulco pelado e ainda encarniçado.
- Juro-te por Deus Nosso Senhor, Eurico, que a mãe e os irmãos ficaram todos escorreitos. – Mais me afiançou Frutuoso, com ar sério e convincente.

(Continua no próximo número)

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