No dia 7 de Setembro, o ministro da
Educação reuniu-se com um conjunto de organizações sindicais de professores.
Depois dessa reunião inútil, o Governo decidiu, unilateralmente, apagar mais de
seis anos e meio ao tempo de trabalho efectivamente prestado pelos docentes. À
decisão, a que, para cúmulo, chamou “bonificação”, oponho um argumento legal,
inscrito na Lei do OE para 2018 (artigo 19º), e dois argumentos, um de natureza
ética, mínima, e outro de índole democrática, máxima, a saber: compromisso
assumido pelo Governo em 2017 e a resolução da AR, votada por maioria. Que a hipocrisia
e a tendência para a traição de António Costa os ignore, não me surpreende,
porque é sinal persistente do seu carácter. Que a opinião pública se deixe tão
facilmente contaminar pela barragem de falsas notícias, que tão a propósito
vieram a público na mesma altura, causa-me uma enorme perplexidade. Será
possível que uma sociedade, que confia os seus filhos aos professores durante
12 anos, aceite vê-los serem humilhados de modo tão soez? Poderão pessoas com
particular responsabilidade, pelo acesso que têm aos meios de comunicação,
deduzir e concluir de modo tão ligeiro e falso sobre a vida profissional daqueles
que lhes ensinam os filhos?
Pretendo neste artigo contraditar o
colonialismo noticioso, conveniente mas desavisado, de quantos repetem conclusões
parciais e superficiais de relatórios que não analisaram criticamente ou sequer
leram, tomando por párias sociais os que ousam resistir à tirania política.
A primeira notícia conveniente tinha por
título: “Mais de metade das baixas na Educação foram fraudulentas”. Teve origem
em dados divulgados pela Comissão Europeia, relativos a cerca de 3000 doentes,
que juntas médicas mandaram regressar ao trabalho. Fraudulentas? Se uma junta
delibera em desacordo com o médico que segue o doente, trata-se de uma fraude?
Saberão os autores da notícia que a maioria dos médicos que integram as juntas
são tarefeiros, cuja contratação arbitrária pela Segurança Social deixa
legítimas reservas sobre o seu grau de autonomia? Que se guiam por tabelas de
duração média das doenças? Tendo as depressões o peso que têm na classe
docente, poderá uma pronúncia de escassos minutos derrogar o parecer de um
psiquiatra, fundamentado em horas de consultas, ao longo de meses? À memória
veio-me o caso escabroso do funcionamento de uma junta, que testemunhei, onde o
mais inocente do processo foi o relatório final ser assinado por alguém que nem
sequer esteve presente naquele acto médico. À memória vieram-me mais casos. De
Manuela Estanqueiro, doente de leucemia, em estado terminal, mandada regressar
às aulas na EB 2/3 de Cacia, por uma junta médica. Morreu um mês depois, em
sofrimento atroz, para não ser despedida por faltas injustificadas. De Artur
Dias, professor na Escola Secundária Alberto Sampaio, de Braga, vítima de um
cancro na garganta, que uma junta médica mandou regressar às aulas, apesar de
não ter laringe. Morreu três meses depois. De Manuela Jácome, professora de
Faro, doente oncológica que, apesar de não ter um quarto do estômago, vesícula,
baço, duodeno e parte do intestino, foi considerada, por uma junta médica, apta
para dar aulas.
A segunda notícia conveniente dizia:
“Bruxelas avisa que descongelamento da carreira dos professores pode pressionar
OE”. Assim, impressivo, retirado com supimpa proficiência jornalística às
entranhas do oitavo relatório de avaliação pós-resgate, produzido pela Comissão
Europeia. Escreveu a dita uma linha de preocupação com os 19,5 mil milhões
servidos às falências canalhas da banca lusa? Não! Referiu-se ela, temerosa, ao
bónus fiscal de 800 milhões servidos ao Montepio? Outra vez não! Aos 450
milhões mais recentes, fora os outros, que foram direitinhos para o Novo Banco?
Nem um débil vagido! Aos 1,15 mil milhões dissipados ruinosamente nos contratos
swap das empresas públicas? Não, não e não, com dissimulação mais fina que a do
Vaticano em matéria de pedofilia. Mas sim, todas as luzes vermelhas a tremular
para o custo do descongelamento das carreiras dos malandros dos professores. E
qual é esse custo? Lembram-se da comissão técnica mista que o iria calcular,
depois de ficar claro que os 600 milhões que Costa usou na AR não passavam de
pura mentira? Porque se tratou de mais um expediente para queimar tempo sem
nada concluir, perdoar-me-ão que recorde o que já aqui escrevi: a narrativa
contabilística do Governo sobre a repercussão da contagem de todo o tempo de
serviço nas contas públicas é falsa. Começa por escamotear que boa parte dos
salários nominais corrigidos pelo descongelamento volta de imediato aos cofres
do Estado, via IRS e contribuições obrigatórias para a CGA e ADSE. Estaremos a
falar de uma percentagem variável, mas nunca inferior a 30%. Estivessem certos
os propalados 600 milhões e mirrariam para, pelo menos, 420. Mas não estão. Com
efeito, quando o Governo compara os dois anos e nove meses que propôs com os
nove anos e quatro meses que os sindicatos reclamam, estabelece um raciocínio
que multiplica o número a que chegou por um factor tempo, proporcional. Ora tal
proporcionalidade não existe. Tão-pouco podem as contas ser feitas partindo do princípio
que toda a gente muda imediatamente de escalão. Obviamente que não muda, já
porque há ciclos em curso, longe do fim, já porque existem quotas
administrativas limitativas, que só o Governo controla, arbitrariamente. E como
se o anterior não bastasse, o Governo considera como sendo de hoje números que,
se estivessem certos, só se verificariam em 2023. Como se o impacto médio, que
a dinâmica do crescimento dita, não fosse muito menor!
Por fim, a terceira notícia conveniente
foi o dilúvio de mentiras que a divulgação do relatório Education at a Glance
proporcionou. Dólares, euros e paridades de poder de compra foram alegremente
misturados, atirados ao ar e caíram onde calhou, para serem traduzidos em
letras de imprensa e sons de rádio e televisão. Por negligência ou pura
malícia, mas sem que uma só voz soprasse dos lados do Ministério da Educação
para repor a verdade e defender os professores, miseravelmente enxovalhados.
O relatório coloca os salários dos
professores portugueses no topo da carreira acima da média da OCDE. Mas os
números apresentados são muito superiores aos reais e não têm em conta os anos
em que as carreiras estiveram congeladas. Situação que determina que não há no
activo um só professor no último escalão, o 10º. E quanto teria de vencimento
líquido esse hipotético professor (não casado, sem dependentes), depois de um
mínimo de 36 anos de serviço? Uns milionários 1989,70 euros.
O relatório situa um professor com 15
anos de carreira no 4º escalão. Mas porque durante 9 anos, 4 meses e 2 dias as
carreiras estiveram congeladas, ele está, de facto, no 1º escalão, com o
invejável salário líquido de 1130,37 euros.
Durante os tempos negros da austeridade,
relatórios deste tipo lograram pôr escravos pobres, modernos, contra pobres
escravos, antigos. António Costa disse-nos que a austeridade acabou. Mas os
relatórios e os seus efeitos continuam.
In “Público” de 19.9.18
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