Jorge Lage |
Mas não habituou, nem o lavrador quis passar
por aquela desonra. E, poucos dias depois, tinha comprado um boi vivo ao Zeca
de Veiga de Lila. Apesar de alto era esguio, o «Lila», assim foi baptizado,
diziam que mais parecia um gato por ser delgado. E provocava animadas conversas
nos adjuntos do Terreiro da aldêa.
- Cá! Não é semente do Marelo – opinou o Chico
Maria.
O Eugenho dizia que era um bei bô e com o
Castanho ainda se fazia melhor. Apesar do semblante carregado e relado, o Manel
lá se foi habituando à nova junta. Aos poucos foi esquecendo o provérbio,
«homes de Santa Maria (de Émeres), beis de Valpaços e mulheres de Valtelhas,
quem os meter em casa torce as orelhas». Aproximando-se o fim de Maio era
preciso segar o feno do lameiro de Vale das Mós, perto da Ponte da Formigosa.
Como sempre, era o Ti Manel Maria (dos Eixes) que segava o feno. Era um dos
melhores gadanheiros que por ali havia e amigo da minha casa e dos meus avós maternos,
Manel Deimãos (Martins) e Maria Rosa (Ribeiro). Nas segadas dos lameiros
tinha-se comida e bebida quanta queriam, binho sempre na cabaça e dez escudos
ao fim do dia… Era uma desfeita se não fosse ele e deixava o feno cortado
rentinho pelo terrão, rapadinho como uma ovelha na tosquia. A jeira era de sol
a sol e à medida que o feno ficava em baranhos ia-se espalhando com as forcadas
para secar melhor. Como ainda não andava na escola, acompanhei a faina da
segada do lameiro e
bebia os movimentos ritmados do Ti Manel Maria,
com contorções da direita para a esquerda e o vaivém da gadanha, acompanhado de
pequenos gemidos. De quando em vez, parava para picar o gume da gadanha e
afiá-la com a pedra bicuda. Esta paragem anunciava que estava na hora de molhar
a garganta, tocando a cabaça do tintol. Trabalho feito, há que regressar, e os
anos a pesarem ao Manel Maria, o meu Pai, desviou-se da Ladeira do Arrebentão,
escolhendo o caminho manhoso da Merigadeira que mais tarde foi alargado para
caminho municipal de veículos. Ainda em Vale das Mós deu para todos matarmos a
sede na pôça da horta do Luís Meireles. Todos, menos o Ti Manel Maria que de
gadanha ao ombro prosseguiu com passo vagoroso, fazendo bailar o copo e a pedra
na cintura. Copo? Um corno de boi bem asadinho,
que os meus seis anos nunca tinham visto. E lá
continuamos a vencer a légua e mêa de lonjura, com as estrelas a contarem-nos
os passos e o pio agourento de uma ou outra coruja a aguilhoar o silêncio
sepulcral. A última subida foi a da Ladeira da Pereira, o caminho velho, ali
era mais uma canelha, tornou-se mais custoso para o gadanheiro. O Ti Manel
Maria arrastou-se um pouco e as pernas fraquejavam e torciam-se. Não me
contive:
- Já entortas as patas co binho!
- Ó meu corno, patas tem-jas tu!
Começaram os cumprimentos elogiosos entre mim e
ele. Depois de algum diálogo vivo entre os dois, o meu Pai ralhou-me e
ficamo-nos por ali, porque, entretanto na curva, avistamos os pobos de Chelas e
dos Eixes. Chegados a casa, a nha Mãe tínha-nos de cêa, umas batatas das novas
cheirosas e umas bogas miúdas do rio Rabaçal fritadas e estaladiças que comprou
ao Ti Grilo peixeiro. Um mimo divinal em que a minha Mãe, na arte de fritar,
rivalizava com a
Maria Ruça do Grilo. As batatas na mesa
corrida, na grande fonte de gemalte esverdeada e as bogas a nadarem em molho de
escabeche noutra azulada, ao chamamento do meu Pai todos
nos sentámos nos bancos corridos e, depois de
partidos os carolos de pão, começámos a tasquinhar. Com o garfo tridente de
ferro na mão, ao espetar a primeira boga, pô-la em cima do
carolo e levá-la à boca apercebi-me que não
tinha malagueta. E disparei: - Ó Mãe esqueceu-se de botar malagueta aos peixes!
- Não esqueci! Não lha pus por causa do Ti
Manel Maria não gostar dos peixes com malagueta!
Contrariado e quebrado no meu orgulho de imitar
o meu Pai, que punha malagueta em muitos pratos, respondi: - Éh! Por causa do
«Merda» não como eu os peixes!
- Oh! Meu «Corno»!... «Merda» és tu!...
O meu Pai repôs a ordem e o respeito e eu
fiquei-me, por birra, pelas batatas.
(continua no próximo número)
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