Fiquei a pensar na falta que nos faz um museu das
descobertas e semelhante ausência de complexos em relação a um passado, que foi
o que foi, sem que possamos interferir.
Um português em turismo nos Países Baixos não pode
deixar de dar uma volta de barco pelo labirinto dos canais de Amesterdão,
ligados ao rio Amstel. Farid, o “capitão-guia” da minha embarcação, era
euroafricano, de pai holandês e mãe marroquina. Ao passar perto da réplica do
navio da Companhia das Índias Orientais (a VOC), que é a atracção maior do
Museu Marítimo Nacional, falou, com indiscutível orgulho, da “idade de ouro” da
Holanda, na primeira metade do século XVII, quando continuou o caminho da
globalização que tinha sido iniciado pelos portugueses. E despachou o tema da
escravatura, comentando que foi uma página negra de uma história muito rica.
Nós temos em Almada uma reconstrução do último navio da carreira da Índia, mas
fiquei a pensar na falta que nos faz um museu das descobertas e semelhante
ausência de complexos em relação a um passado, que foi o que foi, sem que
possamos interferir. Marcas da primitiva globalização estão por todo o lado na
grande metrópole holandesa, seja na toponímia (por exemplo, a Praça de
Suriname), seja na restauração (por exemplo, a gastronomia indonésia).
O viajante luso não podia deixar de visitar a Sinagoga
Portuguesa de Amesterdão. Foi mandada construir em 1670 pela comunidade
sefardita portuguesa na que é hoje a Mr. Visserplein (Praça do Sr. Visser, um
juiz que defendeu os judeus na Segunda Guerra Mundial). Perto, na Sint
Antoniesbreesstraat (Rua Larga de Santo António), fica a Huis de Pinto, a casa
de Isaac de Pinto (1717-1787), um rico judeu português, accionista da VOC,
economista e filósofo. Karl Marx, que está a fazer 200 anos, cita Pinto no
Capital para criticar o liberalismo económico.
Não se pode falar dos judeus holandeses sem nomear o
filósofo Bento de Espinosa (1632-1677), que era filho de um mercador expulso de
Portugal pela intolerância religiosa. Espinosa nasceu e viveu em Amesterdão,
mas foi banido da Sinagoga Portuguesa em 1656, tendo de abandonar a cidade. O
chérem que sofreu é a punição máxima da religião judaica, mas, de início, nada
fazia prever a heresia. Aprendeu o cânone hebraico, preparando-se para ser
rabi. Conheceu aos 14 anos o Padre António Vieira, quando este visitou a
comunidade portuguesa de Amesterdão. O abandono da tradição religiosa familiar
deveu-se à sedução pelas ideias de Descartes (quando Espinosa nasceu, Descartes
vivia em Amesterdão). Não admira, portanto, que na sua Ética a moral seja
tratada no estilo da geometria cartesiana. Além de filosofar, Espinosa polia
lentes para telescópios e microscópios, numa terra que viu nascer esses
instrumentos. Morreu de doença pulmonar associada à poeira do vidro e está
sepultado em Haia, que o homenageou com uma estátua no centro histórico.
Ramalho Ortigão escreveu em A Holanda: “Quem nos dissesse no século XVI que o
obscuro e desprezível judeu, pai de Espinosa, ao emigrar de Lisboa nos
arrebatava uma riqueza comparável à dos imensos territórios do país brasileiro
teria o ar de um utopista em delírio”. Mas foi mesmo assim: “Espinosa, tornado
holandês pela intolerância do nosso despotismo católico, funda no país a que o
rejeitámos as bases de um novo critério que põe a Holanda à frente de todo o
grande movimento filosófico do mundo moderno.”
Sobre o Brasil: no coração de Haia está a casa de João
Maurício de Nassau (1604-1679), de cognome “O Brasileiro” por ter sido
governador de Pernambuco, a “Nova Holanda”. Ao serviço da Companhia das Índias
Ocidentais (a WIC), edificou o Recife à maneira holandesa. Foi ele que, depois
de ter tentado tomar a Bahia, enfrentou uma poderosa armada luso-hispânica em
1639. Em 1640 Vieira pregou na Bahia o Sermão pelo Bom Sucesso das Armas de
Portugal contra as de Holanda, onde ameaçava deixar Deus se ele deixasse os
portugueses. Como é sabido, Deus não deixou os portugueses. Em 1641 foi
celebrado um primeiro tratado de paz em Haia entre a Holanda e Portugal, que
conduziria a outro, ainda em Haia, vinte anos depois, pelo que João Maurício
não tardou a regressar a casa. Hoje o turista pode ir, na capital holandesa, à
Mauritshuis, que alberga um belo museu. É lá que pode ver a obra maior de
Vermeer, Rapariga com o Brinco de Pérola, de 1665. A rapariga, cujo brinco
resultou de duas breves mas geniais pinceladas, vale por si só uma visita à
Holanda.
Professor universitário
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