domingo, 16 de setembro de 2018

A torre da corrupção e a lei do compadrio



João Miguel Tavares - público

A Lei do Compadrio é com frequência acompanhada pela Lei do Sonso. Talvez lhe possamos passar a chamar “Lei Medina”.

Há legítimas razões para suspeitar que nesta terra não se faz uma única empreitada pública acima de três milhões de euros, nem um prédio acima de quatro andares, sem que de alguma forma esteja envolvido dinheiro sujo ou troca de favores. Chamemos-lhe a Lei do Compadrio: “Em qualquer negócio onde o envolvimento do Estado seja indispensável e os fundos envolvidos relevantes, a probabilidade de alguém encher ilegitimamente os bolsos aproxima-se dos 100%.”
Eu escrevo três vezes por semana nesta página e não me chegam os textos para falar de todas as suspeitas credíveis que têm surgido em Portugal nos últimos anos. Mas não desesperemos, que a partir daqui podemos olhar para o copo meio cheio ou meio vazio. Meio vazio: o país está perdido e cada vez mais corrupto. Meio cheio: o país sempre foi profundamente corrupto, mas a justiça tem hoje uma capacidade de investigação e um desejo de escrutínio que não existia no passado. Eu sou um optimista, e opto pelo copo meio cheio. Acredito que aquilo que tem acontecido nos últimos anos, muita à boleia da tragédia socrática e de uma crise que tornou estes comportamentos particularmente obscenos (o caso de Pedrógão é, nesse aspecto, exemplar), é uma atenção redobrada à trafulhice, e a consciência de que a relação dos portugueses com o Estado é de mútua predação: o Estado enche-se com os impostos de todos para depois esvaziar parte para os bolsos de alguns.
Esta semana o semanário Sol e o jornal i recuperaram uma história antiga sobre o novo arranha-céus de Picoas. Notícias sobre o tema existem há muito, incluindo uma invasão de terrenos públicos no decorrer da obra, perante a compreensão da câmara – o que pareceu, desde logo, indiciar uma relação de privilégio. Não admira. Durante mais de 20 anos, o dono do terreno tentou obter o licenciamento de vários projectos, mas a volumetria aprovada ficou sempre aquém das suas expectativas. Em 2011 conseguiu a aprovação de um edifício de sete pisos. Entretanto, hipotecou o terreno ao BES por 15 milhões de euros. Veio a crise e decidiu vendê-lo ao banco por um euro. Subitamente, eis que se dá uma milagrosa mudança de PDM – e os pisos permitidos passaram de sete para 17. Quanto terá valido essa decisão? 
Fernando Medina esteve esta semana na SIC e o jornalista Bernardo Ferrão fez-lhe a pergunta: “A Torre de Picoas está avaliada em cerca de 120 milhões de euros, e o terreno onde foi erguida era de um empresário que achava que podia ali construir entre 12 a 14 mil metros quadrados. Foi-lhe dito que não, que não o podia fazer. Ele acabou por vender o terreno ao BES por um euro, e depois o PDM foi alterado. A capacidade de construção aumentou para 24 mil metros quadrados e fez-se esta torre. Isto não é suspeito, Fernando Medina?” Fernando Medina respondeu: “Não, não é suspeito.”
E pronto. Foram estas as (não) explicações que o senhor presidente da câmara deu aos seus cidadãos. Sejamos justos: Medina disse ainda ter estudado o caso “à exaustão desde muito antes de estar na Câmara de Lisboa” (fiquei curioso sobre esse estudo, mas ninguém aprofundou) e garantiu que tudo se passou de “forma totalmente correcta, pública e transparente”. Só não explicou como, nem porquê. A Lei do Compadrio é com frequência acompanhada pela Lei do Sonso: “Sobre qualquer negócio suspeito, a probabilidade de alguém dar explicações correctas, públicas e transparentes aproxima-se do zero.” Talvez lhe possamos passar a chamar “Lei Medina”.

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