Pensando melhor, é absurdo reservar o
Panteão aos mortos. Se eu mandasse, bênção de que a nação não usufrui, o
Panteão seria o destino imediato dos vivos que revelassem indícios de dimensão
épica.
Enquanto os tailandeses removiam rapazes
de uma gruta, certos portugueses conspiravam para enfiar o dr. Soares noutra. O
facto de se chamar Panteão Nacional não muda nada. E, sobretudo, nada parece
mudar a opinião do PS e do PSD(R) – o “r” é de retorcido –, os partidos
empenhados nesse novo, e útil, desígnio colectivo.
A transição da serventia religiosa para
a pagã não descreve apenas a evolução dos panteões: traduz um dos maiores
equívocos da modernidade. Na primeira acepção, o panteão era um templo consagrado
aos deuses, imaginários mas inquestionáveis por definição da época. Na segunda,
o panteão é consagrado a determinados homens, com frequência homens que boa
parte da população gostaria que fossem imaginários. Até a arquitectura reflecte
o declínio. Do Panteão de Roma, discutivelmente a mais extraordinária obra
arquitectónica, aos excessos neo-clássicos (e derivativos) do Panteão de Paris,
há um enorme salto, não necessariamente para cima.
Mesmo na apropriação do espaço para
celebrar “personalidades” terrenas há diferenças. No Panteão deles, os
italianos arrumaram Rafael, Corelli, Peruzzi, os dois primeiros monarcas e meia
dúzia de figuras adicionais. Os franceses aproximam-se das 70 alminhas (ou
corpinhos, para os descrentes) depositadas no edifício do Quartier Latin.
Naturalmente, a quantidade alarga o critério: naquela multidão, Rousseau e
Mirabeau não serão os únicos que, em vez de homenagens, mereciam uma solha na
cabeça. Resta notar que a decisão de enterrar ali os Grandes Vultos foi tomada
logo em 1791. E que, de então para cá, inúmeras nações exóticas procederam à
indispensável imitação das “luzes”. E que o meu conterrâneo Passos Manuel
(pseudónimo de Manuel Passos) abraçou a ideia em 1836.
Sendo Portugal, não só a cópia da ideia
demorou quatro décadas, como a cópia da respectiva aplicação demorou uma dúzia.
É possível que as deliberações tenham encalhado numa qualquer conservatória. De
brinde, um brinde à portugalidade, a estrutura em causa demorou três séculos a
conlcuir, numa sucessão de derrapagens espectacular mesmo para os padrões
locais. A verdade é que a coisa, numa igreja barroca evidentemente aproveitada
para fábrica de sapatos, acabou por se inaugurar em 1966, com missa do cardeal
Cerejeira e tudo. Dada a carência de luminárias ou, nos raros casos, das suas
ossadas, a cargo de outros sepulcros, optou-se por enfiar no Panteão Nacional
Carmona, Sidónio e Teófilo, Junqueiro e Garrett. Após interregno para trocar de
regime, e acrescentar Humberto Delgado ao rol de portentos, aquilo começou a animar
em 2001. Desde o início do milénio, caíram em Santa Engrácia Amália e Eusébio
(coitados), Arriaga e Aquilino (chiça), e a poetisa Sophia. Agora, chegou a
oportunidade de Mário Soares, que pelos regulamentos deveria consumar-se em
2037.
O prof. Marcelo já reclamou
“flexibilidade”, leia-se a simplificação das leis de modo a apressar o processo
de canonização estatal. Subscrevo sem restrições. Agora que se ganhou embalo, é
ridículo continuar a despachar os mortos para o Panteão às gotas. Este é espaçoso
e capaz de albergar as resmas de ilustres que contribuíram para a pujança do
país. Do Buíça ao padre da Lixa, passando por Saramago, Cunhal, setecentos
artistas, setenta autarcas e dezassete governantes, não faltam nos cemitérios
comuns valentes que alteraram os destinos da pátria e são, por isso, dignos de
honras panteónicas (?). Ou, para recorrer ao jargão do meio, “panteonizáveis”.
Aliás, pensando melhor, é igualmente
absurdo reservar o Panteão aos mortos. Se eu mandasse, bênção de que a nação
não usufrui, o Panteão seria o destino imediato dos vivos que revelassem
indícios de dimensão épica. Ao primeiro indício, um Uber apanharia o épico em
casa e, se escapasse aos taxistas, deixava-o à porta do monumento. O bom senso
recomendaria que por exemplo o “eng.” Sócrates tivesse sido transladado nos
idos de 2006, momento em que os “media”, compreensivelmente babados, descobriram
nele um visionário sem par.
Dadas as circunstâncias, também as
estrelas do poder vigente justificam a honra. Afinal, descontando uns azares
nas finanças, na economia, na saúde, no ensino e nas liberdades, a situação é
fantástica. Tão fantástica que o lugar dos responsáveis pela dita é ao lado dos
heróis de antanho. Somos uns felizardos por dispor de tantos estadistas,
banqueiros, empresários, juristas, sindicalistas, jornalistas, culturistas e
eminências pardas de génio. Somos uns ingratos por privá-los de glória, e uns
palermas por não os privar de rédea. É tempo de fugir à tradição e reconhecer o
valor deles em vida. É tempo de agradecer-lhes os actos e mostrar-lhes as
consequências. É tempo de enclausurá-los, a título patriótico e definitivo, no
Panteão, onde poderão aprimorar a promiscuidade, perdão, o convívio que sempre
cultivaram, tirar “selfies” risonhas e cantar dia e noite a “Casinha” dos
Xutos, que se ainda não estão lá deviam estar há muito. Cabem todos? Se não
couberem, existem as filiais dos Jerónimos e, para os descentralistas, da
Batalha. E em duzentos ou trezentos anos constrói-se um anexo.
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