O PS saiu do armário e aceitou comentar
na política o que sempre disse ser um tabu enclausurado nos dogmas da justiça
porque o seu silêncio se tornou ensurdecedor.
O que espanta
não é o PS e as suas altas individualidades terem decidido expressar agora os
seus estados de alma sobre as acusações que impendem sobre José Sócrates ou
Manuel Pinho; o que surpreende é o facto de se terem conseguido manter em
silêncio durante mais de mil dias. Perceber o que levou o líder parlamentar,
destacados deputados ou o próprio primeiro-ministro a sair do casulo e virem
para a praça dar conta do seu desconforto, da sua tristeza, raiva ou até
revolta com as acusações que
pairam sobre José Sócrates ou as suspeitas que envolvem Manuel Pinho implica
por isso muito mais do que um mero julgamento político: implica uma análise
sobre as causas que permitiram ao PS viver todo este tempo a coberto de uma
óbvia cortina de falsidade e irrealismo. Nessa análise, ninguém sai bem na
fotografia. Nem o jornalismo, nem a política. A vantagem dos pântanos éticos ou
das suspeitas criminais em democracia é que, às vezes, têm de ser drenados. É o
que está a acontecer.
O PS saiu do
armário e aceitou comentar na política o que sempre disse ser um tabu
enclausurado nos dogmas da justiça porque o seu silêncio se tornou
ensurdecedor. As teses sobre a necessidade de o partido fazer
autocrítica, defendidas por
militantes como Ana Gomes, não prevaleceram na sequência de uma
escolha consciente. Não foi a constatação racional de que era necessário
desarmar o anátema da corrupção a tempo de evitar uma contaminação do próximo
congresso que forçou uma mudança de estratégia. Depois de a SIC ter mostrado ao
grande público a natureza e a
gravidade da acusação a Sócrates, depois de se ter instalado na
opinião pública a sensação de que, para lá de eventuais crimes, o PS liderou o
país através de um mitómano habituado a modos de vida muito pouco socialistas,
ficou impossível continuar a chutar para canto. Mas, mesmo que o PS estivesse
tentado a manter o seu silêncio cauteloso e hipócrita, a revelação de que
Manuel Pinho recebeu uma “avença” de Ricardo Salgado acabou com todas as suas
veleidades.
O problema
desse governo socialista deixou então de estar apenas inquinado pela
megalomania ou até pelo suposto perfume ácido da corrupção em torno de um
homem. A perfídia atribuída a Manuel Pinho deu origem a uma suspeita sistémica
sobre esse mesmo governo. Deixou de se tratar de uma vergonha protagonizada por
uma pessoa. Havia afinal mais gente naquele Conselho de Ministros capaz de
vender a alma ao diabo. Manuel Pinho tornou viável a suspeita de que o Governo
de Sócrates estava excessivamente exposto ao relativismo ético ou até à própria
venalidade. Um suspeito era uma vergonha. Dois dão corpo a um escândalo.
Mesmo que
insistisse em manter o seu interessado respeito pela separação dos poderes (“à Justiça o que
é da Justiça, à política o que é da política”), António Costa e os
seus pares não podiam continuar sem expressar a sua “revolta” ou a sua
“vergonha” para com um ex-primeiro-ministro das suas cores que levava uma vida
sumptuária à custa da alegada generosidade de um amigo. Nem podiam ficar
calados quando um dos seus antigos ministros recebia todos os meses um cheque
chorudo de um banqueiro pérfido depois de ter jurado servir a República e o
país em nome do PS. O PS falou porque foi obrigado a falar. Os seus responsáveis
disseram o que disseram não tanto por convicção (para isso há que ouvir Ana
Gomes ou Manuel Alegre) mas porque não tinham alternativa. Daí a hipócrita e
patética declaração da
semana passada de Carlos César, que para justificar a sua “revolta”
teve necessidade de dizer que o Governo Sócrates foi bom e que os outros
partidos têm telhados de vidro. Têm sim senhor, de Dias Loureiro a Paulo
Portas, do escândalo dos submarinos a esse monumento ao roubo da propriedade
pública que foi o caso Portucale. Mas não é disso que se está a falar
agora.
Não tinha de
ser assim. José Sócrates era mesmo antes da acusação da Operação
Marquês um activo tóxico para a credibilidade do PS. No seu lamentável
currículo estavam já inscritas suspeitas como a do aterro da Cova da Beira ou
do licenciamento do Freeport e provas acabadas do seu desprezo pela ética em
histórias sórdidas como a da sua licenciatura ou a assinatura
duvidosa de projectos de construção– neste caso, mais do que uma
ilicitude de natureza penal, o que estava em causa era o horror de sabermos que
o primeiro-ministro de Portugal tinha aposto a sua assinatura naquelas aberrações
urbanísticas. Consegue-se perceber que António Costa ou os líderes do PS
hesitassem em condenar alguém indiciado ou acusado – ao contrário do que
apregoam por aí os justiceiros que há muito condenaram José Sócrates usando a
luz da sua presciência ou o brilho da sua capacidade de interpretação dos
factos. Mas não se consegue perceber que o PS tenha demorado tanto tempo para
se dizer envergonhado com essa figura sinistra que em tempos nos governou.
Se houver
alguma consequência para o PS no futuro próximo, ela virá da factura a pagar
por esse cinismo corporativo. Ou ainda da suspeita, legítima, que levará muitos
cidadãos a duvidar dos membros do Governo de José Sócrates que dizem que não
sabiam de nada. Nada nos deve levar a suspeitar que eles sabiam de facto. Mas
de uma dura e legítima crítica nem eles, nem António Costa se livram: se nada
viram nem suspeitaram, ou foram ingénuos, ou crédulos ou demasiado cegos pela
obediência ao partido para não se aperceberem o que estava a acontecer. Terem
acreditado que a vida faustosa de Sócrates era paga com dinheiro da família
expõe protagonistas como Augusto Santos Silva ou Vieira da Silva pelo menos a
uma crítica evidente: durante a maioria de Sócrates nem foram exigentes, nem
cautelosos na prossecução do interesse público.
Serão estes
constrangimentos capazes de perturbar a caminhada de António Costa e do PS em
direcção à vitória mais que expectável nas próximas legislativas? Não. A menos
que surjam factos novos, os socialistas acabarão por conseguir demarcar-se de
Sócrates e de Pinho e seguir em frente. A memória na política vale menos do que
o indicador do consumo privado e no final do dia acabará por vingar. Sobra por
isso uma única consequência positiva em todo este drama: o PS caiu na real e ao
fazê-lo deu sentido a um debate obrigatório sobre um governo recente cujo líder
é suspeito de protagonizar o mais repugnante caso de corrupção da era
democrática. Sim, ele continua inocente do ponto de vista judicial: mas na
política não é necessário apenas combater os criminosos. É também necessário
sair do murmúrio e dizer sem equívocos que houve um primeiro-ministro cujos
comportamentos éticos enlamearam Portugal. Por muito que custe ao PS, está na hora
de tirar o lixo debaixo do tapete.
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