A sociedade
portuguesa gera rotação no poder quando o dinheiro acaba, como vimos em 2002 ou
em 2011. Mas já não gera alternativas, como constatámos em 2015 com o regresso
dos colegas de Sócrates.
Tal como
todos os políticos, a eurodeputada Ana Gomes chegou a algumas conclusões sobre
o caso Sócrates-Salgado. Mas ao contrário de todos os outros políticos, não as
guardou para si ou para os seus amigos. Disse-as em voz alta, este fim de
semana: “o Partido Socialista prestou-se a ser
instrumento de corruptos e de criminosos”, e avisou que quer o congresso do PS
a discutir porque foi assim. “Pela regeneração do próprio PS, da política e do
próprio país”.
Alguém dirá
que é muita coragem para uma militante socialista. Mas Ana Gomes não é apenas a
única socialista a dizer o que pensa sobre o caso Sócrates-Salgado. É mais do
que isso: é a única figura política, de qualquer partido. Porque a propósito da
Operação Marquês, a única coisa que os nossos oligarcas gostam de comentar ao
pé do microfone é a “violação do segredo de justiça”, isto é, a publicação pela
imprensa das informações que lhe chegam do processo. Sobre isso, não falta a
ninguém eloquência. O problema, como é antiga tradição em Portugal, é o
“jornalismo de sarjeta”. O Dr. Salazar certamente que estaria de acordo.
Porque é que
os outros políticos não dizem nada? Porque o que está em causa no processo
Sócrates-Salgado, à medida que o novelo é desfiado pela justiça e pela
imprensa, é demasiado grave para a oligarquia se permitir olhá-lo de frente.
Não é um episódio isolado de corrupção pessoal, mas um sistema, um “mecanismo”,
em que um chefe de governo e um dos maiores banqueiros do país terão, segundo a
acusação, conspirado contra a lei e contra o interesse público. Ou seja, um
Lava Jato, que só parece mais pequeno, não porque Portugal seja pequeno, mas
porque o regime continua a esforçar-se por reduzir tudo a um fait-divers,
como se tudo, no fundo, não fosse mais do que um daqueles escândalos privados
com que o jet-set dá cor à imprensa popular. Entretanto, os
acusados, suspeitos e implicados insistem em manter-se no palco, enfrentando
com desfaçatez e absurdo toda a evidência. Na plateia, os oligarcas guardam silêncio,
incluindo os antigos justiceiros do BE e do PCP. Tal como não deram pelas
cativações de Centeno, também não dão pelo que se vai sabendo do que terá sido,
segundo a justiça e a imprensa, o império de Sócrates e de Salgado entre 2005 e
2011.
De facto, não
é só coragem que falta. Falta também uma alternativa. Se tivessem de ser
tiradas todas as consequências desta história, que aconteceria? Infelizmente, e
ao contrário do que espera Ana Gomes, o PS, a política e o país não parecem
capazes de regeneração. É por isso que somos governados, não apenas pelo PS,
mas exactamente pelas mesmas pessoas que estiveram no governo de José Sócrates.
A sociedade portuguesa gera rotação no poder quando o dinheiro acaba, como
vimos em 2002 ou em 2011. Mas já não gera alternativas, como constatámos em
2015, com o regresso dos colegas de Sócrates, e agora, com a liquidação do PSD
por Rui Rio. A divergência económica em relação à Europa, o endividamento e o
envelhecimento da população tiraram ânimo e independência à sociedade
portuguesa. Em Espanha, a revolta contra a corrupção fez nascer o Ciudadanos;
em França, a invalidez dos velhos partidos gerou Macron. Aqui, há vozes
isoladas, como Ana Gomes.
Mas se está
calada, nem por isso a oligarquia está quieta. Move-se — para se defender.
O grande desígnio nacional é agora o afastamento da procuradora-geral da
república. Porque se na política só há uma Ana Gomes, quem sabe se na justiça
também só há – ou só possa haver — uma Joana Marques Vidal? Talvez baste
afastá-la para, utilizando a metáfora de Ana Gomes, a tartaruga poder continuar
com a cabeça dentro da carapaça.
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