sábado, 14 de abril de 2018

O Portugal de Centeno é muito poucochinho



José Manuel Fernandes - OBSERVADOR

Se 19 países da UE cresceram mais do que nós em 2017, porquê os foguetes de Centeno? Se 40% dos novos contratos são de salário mínimo, porquê tanto entusiasmo com o emprego? Melhor tem de ser possível.
Áustria, Bulgária, Chipre, Croácia, Eslováquia, Eslovénia, Espanha, Estónia, Finlândia, Holanda, Hungria, Irlanda, Letónia, Lituânia, Luxemburgo, Malta, Polónia, República Checa e Roménia.
O que têm em comum estes 19 países? São todos membros da União Europeia e todos registaram em 2017 taxas de crescimento económico superiores à media em Portugal. O que significa que entre os 29 Estados-membros Portugal ficou em 20.º lugar, atrás da maioria dos países com a sua dimensão. Isto quando todos os ventos parecem soprar a nosso favor.
Esta lista deveria levar Mário Centeno a ter um pouco mais de pudor, a exibir menos auto-satisfação e mostrar mais contenção no auto-elogio. Portugal está longe de viver “o seu melhor desempenho económico e financeiro de várias décadas”. Muito longe mesmo — basta olhar para os números do final da década de 1980 e para a década de 1990.
É verdade: em 2017 tivemos a melhor taxa de crescimento do século XXI. Só que isso não era especialmente difícil, já que na primeira década deste século, até à crise que obrigou à ajuda externa, Portugal tinha registado a terceira pior taxa de crescimento de todo o mundo. Sim, de todo o mundo. No acumulado desses dez anos só a Itália e o Zimbabwe (de Robert Mugabe) tinham crescido menos do que nós.
Não é pois difícil concordar com Daniel Bessa quando este defende que o discurso político do ministro das Finanças é “hiperbólico” e “introduz um sentido de mediocridade porque pede pouco”. Mais: “Congratulámo-nos muito com pequenos resultados. Contentámo-nos em ser 20.º em 28. É poucochinho”.
Pois é. Mas podia ser mais? Podia e pode. E se não acreditarmos que pode então o melhor é habituarmo-nos à vil tristeza de nunca passarmos do estádio de país remediadinho e, às vezes, bem-comportado.
O lado remediadinho é o que vai bem com o respeitinho e o satisfazer-se com pouco que nos sobram ainda do legado cultural do salazarismo. O lado bem-comportado é aquele que neste momento parece preocupar mais Mário Centeno, o que não deixa de ser uma curiosa e fantástica evolução.
Admito que muitos não se recordem, mas a primeira vez que o novel ministro das Finanças rumou a Bruxelas levava debaixo do braço um projecto de Orçamento (para 2016) que violava grosseiramente as regras do pacto de estabilidade. Regressou do Eurogrupo com o rabo entre as pernas, refez as contas e o Orçamento, esqueceu-se de toda a estratégia que tinha desenhado quando coordenara a parte económica do programa eleitoral do PS e converteu-se à ortodoxia do sr. Schäuble. Ainda bem, mesmo que esses meses de confusão, desorientação e dúvida nos tenham custado muito caro, com os juros da dívida pública a subir de tal forma que os planos para devolver mais cedo parte do empréstimo do FMI tiveram de ser adiados.
Hoje, que Centeno se gaba da descida dos pagamentos que fazemos em juros e reivindica para si o mérito da antecipação dos pagamentos ao FMI convém recordar que esses pagamentos começaram por ter de ser adiados. O que significa que o que poupámos em juros em 2017 já poderia ter sido poupado, pelo menos em parte, em 2016.
Mas adiante. O que o ministro deve ter percebido logo nessas primeiras reuniões de Bruxelas é que tinha de manter a austeridade, mesmo que sob outras roupagens. E foi isso exactamente que fez nestes dois anos, com a cumplicidade dos seus aliados à esquerda que sabiam muito bem o que se estava a passar mas fingiam que nada viam. Hoje sabemos, pela boca de um ministro, o da Cultura, que “a viragem da página da austeridade não foi a viragem da página das dificuldades”, uma curiosa semântica para descrever aquilo que foram as duas opções centrais deste Governo: “devolver” rendimentos às clientelas da administração pública sacrificando para isso tudo o mais, do investimento corrente e até urgente ao pagamento das dívidas a tempo e horas, assim se chegar ao ponto de ruptura em muitos serviços públicos; e trocar a “devolução” dos impostos directos sobre o rendimento por brutais aumentos dos impostos indirectos, num mix que acabou por resultar que, ao dar com uma mão e tirar com a outra, o Estado ainda acabou por extrair mais riqueza da economia, pois em 2017 bateram-se todos os recordes de carga fiscal.
Image result for hospital de s. joão com quimioterapia nos corredoresIsto foi feito de forma dissimulada, por via das famosas cativações, e através de um exercício orçamental muito pouco transparente, mas para o país teve, ao menos, uma virtude: não houve descontrolo do défice público, como se temia. A Helena Garrido e o Paulo Ferreira já explicaram bem como todo este processo decorreu. E tudo enquanto a surpreendente bonomia dos aliados à esquerda permitiu abafar a contestação social fazendo com que só agora comece a ser impossível esconder os danos que estas opções provocaram.
Mesmo assim, Mário Centeno não poderia apresentar-se como o nosso “super-Mário” se não tivesse beneficiado de um crescimento económico a reboque das exportações, o que constituiu outra suprema ironia. Quando ainda estava na oposição, o entronizado mago das Finanças advogava uma recuperação da economia com base na expansão do consumo interno, por contraponto à aposta nas exportações (que incluem o turismo) que era a marca de água da anterior maioria; quando se tornou ministro viu a economia a crescer graças a um contributo muito mais forte das exportações por contraponto a um consumo interno que se manteve hesitante, senão mesmo desconfiado.
Ora é precisamente esta experiência que nos mostra que era possível ter seguido outro caminho para chegar ao mesmo resultado do défice, porventura até a melhores resultados no que respeita à dívida, se tivesse havido mais atenção aos serviços públicos e menos submissão às corporações do Estado, sobretudo se tivesse havido uma política mais amiga das empresas e do investimento e não cedências (mesmo que limitadas) às propostas de contra-reforma dos parceiros da geringonça e de boa parte do PS.
A história não se reescreve, nem pode voltar a ser vivida, mas não podemos deixar de nos interrogar até que ponto este ambiente de contra-reforma e de hostilidade às empresas não é responsável pelo lado sombrio daquela que, a par com a redução do défice, é a grande flor na lapela de Mário Centeno: a redução do desemprego. Daniel Bessa notou, com razão, que quando o emprego cresce a um ritmo superior ao da economia (3,2% contra 2,7%) isso significa que “o que se está a passar é que a economia está a crescer nos setores de produtividade mais baixa”. E isso é mau. Tão mau que há um indicador especialmente crítico quando olhamos para o emprego que está a ser criado: 40% dos novos contratos pagam apenas o salário mínimo. Sendo que a percentagem do número de trabalhadores que recebe o salário mínimo está a subir, tendo chegado a 22% do total em 2017 (o relatório completo pode ser lido aqui, mas infelizmente o actual Governo tem dificultado o acesso às bases de dados a investigadores independentes, pelo que estudos mais profundos sobre o impacto do salário mínimo, como os que o próprio Mário Centeno realizou no passado, são mais difíceis de concretizar).
Há uma hipocrisia sem fim nas correntes demonstrações de indignação dos partidos mais à esquerda da geringonça com o rigor orçamental de Centeno. A hipocrisia de quem foi cúmplice e de quem sempre fez ouvidos de mercador às denúncias sobre as cativações ou aos alertas do Conselho de Finanças Públicas sobre a falta de transparência dos números ou sobre o défice de investimento. E também a hipocrisia de quem sabe que não pode saltar agora do comboio a que se atrelou, mesmo suspeitando que Mário Centeno já está mais a pensar no seu futuro do que no futuro do governo das esquerdas.
Por outro lado é necessário que quem se opõe a este Governo defenda que havia e há outros caminhos a percorrer, políticas mais amigas da economia, medidas mais ambiciosas, reformas que contrariem a nossa submissão às burocracias estatais, aos impostos “indolores” mas crescentes e à rigidez da administração pública.
Insisto: há mesmo outros caminhos. Repito: os êxitos conseguidos não são fruto de uma nova estratégia, mas aconteceram apesar dessa estratégia. E não posso deixar de gritar: tudo isto é pouco, é mesmo muito poucochinho se quisermos um país menos pobre e menos bloqueado.

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