No actual estado da política
nacional vale tudo, excepto isto: admitir que o fim da austeridade é uma das
maiores aldrabices da política portuguesa.
Mário Centeno podia ser
apenas bom com os números. Mas não: ele também é bestial com as palavras.
Quando os números batem certo, Centeno agarra-se aos números. Quando os números
deixam de bater certo, Centeno modifica as palavras. De uma forma ou de outra,
ganha sempre, alternando entre o amor pela Matemática e a paixão pelo
Português. Vale a pena analisar os conceitos de “carga fiscal” e de “esforço
fiscal” que há dois dias animaram o debate entre Mário Centeno e António Leitão
Amaro no Parlamento – é uma daquelas bonitas ocasiões que nos permitem apreciar
o nível de criatividade a que o ministro das Finanças consegue recorrer para
provar que tem razão, mesmo quando não tem razão alguma.
O conceito de carga fiscal
está definido nos manuais: a carga fiscal é o rácio entre o total de impostos
arrecadados pelo Estado num determinado ano mais as contribuições obrigatórias
dos seus cidadãos (Segurança Social) e o produto interno bruto que o país
consegue gerar nesse período. Ela serve para medir o esforço que a sociedade
faz para pagar, em cada ano, os serviços que lhe são prestados pelo Estado.
Problema grave do actual Governo: como compatibilizar a conversa do “virar da
página de austeridade” com aquilo que têm sido os aumentos anuais da carga
fiscal. Como é possível dizer que o Governo de António Costa e Mário Centeno
chegou heroicamente, em cima de um corcel branco, para nos salvar das malvadas
“políticas de empobrecimento” de Passos Coelho, quando o Estado nunca sacou
tanto dinheiro aos portugueses em percentagem do PIB como agora?
Os números do INE não deixam
dúvidas: 67 mil milhões de euros arrecadados em impostos e contribuições em
2017, o que equivale a 34,7% da riqueza produzida no país. É o valor mais alto
desde, pelo menos, 1995 (ano em que o INE começou a compilar estes dados sobre
as contas públicas), superando o recorde de 34,4% registado em 2015. Este
número deveria ser extremamente embaraçoso para o Governo e para os seus
parceiros de esquerda. “Deveria”, claro está, se o mago Centeno não entrasse
imediatamente em acção, argumentando que essa coisa da carga fiscal – que ainda
em 2016 ele considerava um conceito importantíssimo, ao ponto de ter dado
origem a confusões com o seu colega socialista Paulo Trigo Pereira a propósito
das estimativas do Orçamento – não é, afinal, o conceito mais adequado para
analisar esta questão.
O que interessa agora –
garante-nos Mário Centeno – é o “esforço fiscal”. E esse, como não poderia
deixar de ser, diminuiu muitíssimo, porque foi através da melhoria dos
rendimentos dos portugueses que se conseguiu mais emprego, mais consumo e mais
impostos. O pobre deputado Leitão Amaro, que se limitou a usar os números do
INE, foi acusado de “iliteracia financeira e numérica”, porque o Ronaldo do
Eurogrupo também é especialista em pontapés de bicicleta: o que importa é meter
a bola dentro da baliza.
O que é exactamente o
“esforço fiscal”, afinal? Não interessa, desde que diminua. Se o INE não
contabiliza o “esforço fiscal”, contabilizasse. E se um dia, por azar, o novo
“esforço fiscal” também calhar subir, o ministro das Finanças criará de
imediato o conceito de “entusiasmo fiscal”, de “vigor fiscal” ou de “ímpeto
fiscal”, qualquer coisa que acabe em “fiscal” e que diminua face ao ano
anterior. No actual estado da política nacional vale tudo, como se vê. Excepto
isto: admitir que o fim da austeridade é uma das maiores aldrabices da política
portuguesa.
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