Alberto Gonçalves - OBSERVADOR
O templo do saber: subsídios para uma visão menos apalermada da
universidade em contexto nacional contemporâneo.
O problema maior é a crença generalizada de que a universidade – a exacta
universidade que aceita sumidades como o dr. Vale de Almeida – é um abrigo de
inquestionável erudição. E de “prestígio”.
Tenho tantas saudades da universidade quanto da varicela, com a agravante
de que, ao contrário do que sucedeu com a segunda, ainda não esqueci a
primeira. Lembro-me dos professores, na maioria semi-alfabetizados. Lembro-me
das aulas, repetições de cartilhas caducas e puras alucinações. Lembro-me das
“referências teóricas”, quase sempre maluquitos franceses, argentinos e até
portugueses. Lembro-me das ocasiões em que me perguntei o que fazia ali. E
lembro-me de desistir de fazer: a partir de certa altura, decidi dedicar-me a
conversas com um punhado de colegas, nas horas livres e nas restantes.
Passei os últimos três anos do curso no café vizinho, a trocar
impressões, livros e cassetes. Ao longe, no interior de um barracão lindíssimo,
decorriam prelecções fascinantes em redor de trabalhos com as palavras
“subsídios” ou “contributos” no subtítulo. À aproximação dos exames, eu
folheava anotações alheias e fotocópias de maoistas parisienses, despejava o
entulho nos testes e, menos devido à inteligência própria do que à boçalidade
daquilo, obtinha uma nota distinta. Um magnífico dia, o suplício acabou. O
vetusto barracão emitiu um diploma em pergaminho a declarar-me licenciado. Por
mim, nunca levantei o diploma e jurei, embora não fosse preciso, que a
experiência académica terminaria ali.
É verdade que a minha “formação” (digamos) aconteceu em sociologia,
matéria propensa ao burlesco. Nos anos seguintes, porém, aprendi (a
aprendizagem é um processo) que, por incrível que pareça (e parece), há pior.
Não desejo a ninguém o contacto directo com a realidade: um passeio pelos sites
dos “estabelecimentos” disponíveis, com consulta dos cursos disponíveis, dos
programas disponíveis e dos docentes disponíveis, é suficiente para esclarecer
os incautos. Se os incautos insistirem, eles que se inscrevam em certas coisas
que há por aí.
Não valeria a pena dar exemplos. Mas dou um. Nas últimas semanas, causou
escândalo a notícia de que Pedro Passos Coelho iria providenciar lições num tal
Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa (ISCSP).
As patrulhas ideológicas, sob a forma dos professores que subscreveram um
protesto alusivo, correram logo a chamar a atenção para a falta de
credenciações do ex-primeiro-ministro. Conseguiram chamar a atenção para a
falta de juízo de quem confunde educação com o evangelismo das “causas”. Na
tentativa de denunciar uma hipotética fraude, recordaram a fraude real a que,
com as excepções da praxe (sem trocadilho), se chama “ensino superior”.
Dos indignados, o mais “público” é talvez o deputado, ou antigo deputado,
socialista Miguel Vale de Almeida. Dos estudos que publicou, destaco “Ser mas
não ser, eis a questão. O problema persistente do essencialismo estratégico”;
“A teoria queer e a contestação da categoria ‘género’” e “O esperma sagrado:
algumas ambiguidades da homoparentalidade em contextos euro-americanos
contemporâneos”. Cito um resumo do último, escarrapachado na página
“Ciência-IUL – A excelência da investigação e ciência no ISCTE”: “Igualmete
(sic), quanto menos provisâo (sic) legal exista, menos parece haver una cultura
de como fazer e proceder em situaçoes (sic) de disputa de paternidade entre
gays e lésbicas, assistindo-se ao recurso ou à normativade (sic) legal, ou à
normatividade moral (e necessariamente heteronormativa (sic), androcêntrica e
patrilinear) a ela associada.” Concedo uma pausa para o aplauso da forma e do
conteúdo. E depois um minuto de silêncio para evocarmos o abaixo-assinado e
reflectirmos na “dignidade dos profissionais da ciência e do ensino”.
O problema não é o dr. Vale de Almeida achar que Pedro Passos Coelho não
serve para leccionar na universidade. O problema é o dr. Vale de Almeida achar
que o dr. Vale de Almeida serve. Outro problema é a universidade concordar. E o
problema maior é a crença generalizada de que a universidade – a exacta
universidade que aceita sumidades como o dr. Vale de Almeida – é um abrigo de
inquestionável erudição. E de “prestígio”. Pela parte que me toca, só não
escondo que frequentei semelhante antro na medida em que seria ridículo, e
provavelmente escusado. Mesmo assim, inúmeros compatriotas ostentam as
habilitações com orgulho. E uma razoável quantidade finge habilitações com
empenho.
Já é rotina. De vez em quando, destapa-se um político que, a bem do
gabarito, falsificou o currículo. Esta semana, o destapado foi um Feliciano
Barreiras Duarte, pelos vistos o novíssimo secretário-geral do PSD. Evito os
detalhes, entretanto divulgados com abundância, e noto apenas que, em lugar de
inventar uma licenciatura, o prof. dr. Feliciano optou por inventar um emprego
numa universidade californiana, a de Berkeley. Ah, Berkeley… Também andei por
lá – durante dez minutos, perdido após escolher a saída errada para o aeroporto
de São Francisco. Ao que consta, o prof. dr. arq. Feliciano nem isso: as suas
conexões à instituição especializada em censurar oradores pró-Trump são
meramente platónicas, o bastante para definir um carácter e, em Portugal, uma
carreira.
Repleta de maluquices (“…tem 21 livros publicados, prefaciou vários
trabalhos de investigação, foi conferencista e moderador em 164 conferencias,
seminários e afins, publicou cerca de 750 artigos e cronicas em jornais e
revistas, e tem variadas intervenções no plano profissional, extraprofissional,
publica, política e de outras tipologias”), dadaísmo (“…a elaboração deste
relatório, com os fins e objectivos anteriormente referidos, pretende-se que
seja consabido, o relacionamento entre a primeira e a segunda parte do mesmo,
com a evidência principal, que de entre a multiplicidade do currículo do seu
autor, poderá sobressair e outrossim destacar, o fio condutor de que…”) e
desafios à língua (ver acima), a “Conclusão” da tese de mestrado do prof. dr.
arq. juiz Feliciano, avaliada com 18 valores pela ex-ministra dos incêndios, é um regalo.
A moral da história é que, com frequência, um percurso académico simulado
não produz resultados muito diferentes dos percursos académicos autênticos.
Sobretudo no vago universo das “humanidades”, onde a distância da trafulhice à
pertinência é subtil, não há escassez de vultos incapazes de amanhar uma
redacção da “primária”. Curiosamente, essas limitações não suscitam engulhos
até ao momento em que o vulto saltita para a política, por acaso das raras
áreas do saber que não carece de saber nenhum. Quem a sabe toda é o bastonário
da Ordem dos Médicos, que há tempos, por vergonha, pediu alternativas ao
tratamento por “dr.”. O homem tem a mania e tem razão.
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