Alberto Gonçalves –
OBSERVADOR
Numa única frase,
o dr. Costa conseguiu incluir “tivemos”, do verbo “ter”, e “tive”, do verbo
“tar”, sem perceber que um dos vocábulos apenas cabe nas sofisticadas conversas
das altas esferas do PS.
Na quinta-feira, o
dr. Costa escreveu no Twitter: “Tive com o Presidente da República da Eslovénia
e tivemos uma excelente e amigável reunião de trabalho”. Desconheço o idioma em
que a excelente e amigável reunião decorreu, mas rezo aos santinhos para que
não fosse o português. Numa única frase, o dr. Costa conseguiu incluir
“tivemos”, do verbo “ter”, e “tive”, do verbo “tar”, sem perceber que um dos
vocábulos apenas cabe nas sofisticadas conversas mantidas pelas altas esferas
do PS.
Vendo bem, pouco
surpreende num sujeito que diz “verdeira” (queria dizer “verdadeira”),
“poder-lhe-dizia” (“podia dizer-lhe”), “competividade” (“competitividade”),
“prelenamente” (“plenamente”), “insintizamos” (“sintetizamos”), “era o que eu
estou” (“era o que eu estava”), “pulação” (“população”), “arrepatação” (?),
“badéfice” (“défice”), “protividade” (“produtividade”), “mobilição”
(“mobilização”), “precalidade” (“precaridade”). E isto numa única ocasião, uma
intervenção no parlamento há cerca de um ano (encontra-se facilmente na “net”,
sob o adequado título “António Costa desafia Jorge Jesus para um duelo de
português”). O dr. Costa escreve como fala e, para nossa miséria, provavelmente
fala como pensa.
Mesmo se acertasse
na grafia ou na fonética, as palavras que compõem o discurso do dr. Costa são
escassas e, em geral, horrendas. “Competitividade”. “Desafio”.
“Sustentabilidade”. “Estreitar”. As expressões são ainda piores: “prestação
operacional”, “fazer renascer”, “aposta estratégica”, “coesa e competitiva”. Se
adicionarmos a desastrosa pontuação (“Reuni hoje em São Bento, com o Primeiro
Ministro [sic – nem o próprio cargo escapa à razia gramatical] da Grécia.”), é
inevitável que cada texto do homem constitua uma portentosa colectânea de
vacuidades, para cúmulo quase sempre mentirosas. O que vale ao dr. Costa é o
inadvertido sentido de humor, talento que, em Setembro passado, o levou a
louvar a língua portuguesa na ONU. Meses antes, incitara os professores de
português a partirem para França – um óptimo conselho, já que, a julgar pelo
dialecto do primeiro-ministro, há décadas que aqui não andam a fazer nada.
Muitos acharão
que, sendo o dr. Costa um indivíduo que usurpa as eleições para alcançar o
poder, abre o poder a forças totalitárias, derruba a austeridade através do
generoso aumento dos impostos, nacionaliza subtilmente o que se mexe e o que
não se mexe também, regulamenta os comportamentos e não tarda a respiração,
compra parcelas da sociedade mediante benesses e a devastação do resto,
controla os “media” que consegue controlar e censura o que não controla,
subtrai à ralé para resgatar compinchas e “elites” e despreza com estranho
descaramento tragédias inéditas, o pormenor dos atentados lexicais é só um
pormenor, um anexo, um pechisbeque minúsculo e até divertido. Não é. Sem o
analfabetismo, acumulado em militância partidária de décadas, seria improvável
que alguém cometesse as proezas acima descritas. A espectacular ignorância da
criatura é essencial para compreender a criatura e as respectivas acções.
A História, claro,
prova que a sabedoria não garante a virtude. Porém, não faltam histórias sobre
a facilidade com que a boçalidade extrema propicia a malvadez, e assegura
calamidades proporcionais à influência do boçal. O mito do “bom selvagem” é
exactamente um mito. Por definição, o selvagem – incluindo aquele a quem se
vestiu um fatinho e largou no Rossio às gargalhadas – é manhoso, cruel e
incapaz de experimentar empatia. O selvagem torce a realidade até esta se
encaixar nos seus pobres delírios. O selvagem confunde delírios com princípios
e convicções com apetites. O selvagem é mau. O selvagem é péssimo. Reduzido ao
primitivismo, o ser humano dedica-se a uma actividade exclusiva: a
sobrevivência, à custa de tudo e de todos.
A fim de chegar
onde pretende, e onde o seu turvo discernimento exige, o selvagem faz (com
previsível brutalidade) o que é preciso e diz (com previsíveis calinadas) o que
era escusado. Além de atropelar a língua, e justamente por causa disso, o
selvagem atropela o que calha. O selvagem fica impecavelmente numa jaula. Às
vezes, o azar coloca-o num trono. Numa ocasião ou noutra, nem países
civilizados escapam a cair nas mãos de um puro, rematado e perfeito selvagem.
No Portugal recente, cujo nível civilizacional está aberto a debate, essa negra
hipótese era uma fatalidade adiada por milagre. É evidente que os milagres
acabaram. Tamos desgraçados.
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