Sendo um cidadão atento,
fui a correr descobrir o que é a Web Summit. Pouco depois, regressei a correr
ainda mais. De medo. Só alguns dos oradores indígenas bastariam para assustar
um herói de guerra: o dr. Costa (que, ficámos a saber, fala tão bem inglês
quanto português), o prof. Marcelo, o eng. Guterres, o sr. Figo, dirigentes do
futebol, senhores da banca e ilustres matarruanos em geral. Em suma, política,
bola, Estado e a previsível tralha da “influência” e do compadrio. De brinde, o
dr. Louçã, cuja presença num evento alegadamente dedicado a ideias novas é
comparável a convidar Stephen Hawking para abrilhantar o carnaval de Torres
Vedras.
Para cúmulo, tamanha
maravilha aconteceu no exacto momento e na exacta cidade onde morrem pessoas
por via da “legionella”, onde um ministro anuncia o aumento de IRC e onde, a
pedido de corporações, a polícia enxota os condutores da Uber e similares que
tentam aproximar-se do aeroporto (sou testemunha interessada: aterrei em Lisboa
por motivos que não vêm ao caso e apenas o terceiro carro arriscou apanhar-me).
Segundo a propaganda, a Web Summit mostra a nossa abertura à inovação e à
iniciativa e ao investimento. A sério? Se no ano que vem resolverem transladar
a festança para Caracas, as diferenças serão mínimas. Uma “hashtag” promocional
jurava: #thisisportugal. E o pior é que é verdade.
Sobretudo, a moderníssima
Web Summit aconteceu no tempo e no lugar em que, a propósito da revolução de
1917, o líder do PCP proclamou, aliás pela enésima vez, as portentosas virtudes
da União das Repúblicas Socialistas e Soviéticas. No Coliseu dos Recreios, pelos
vistos também receptivo à comemoração de revoluções sanguinárias e à “stand up
comedy”, Jerónimo de Sousa falou e disse. Disse que a URSS transformou a “velha
Rússia” num paraíso “altamente desenvolvido, mais industrializado e socialmente
mais avançado”. Disse que foi “a pátria dos sovietes” a primeira do mundo “a
desenvolver como nenhum outro, direitos sociais fundamentais”. Disse que a URSS
teve um “inquestionável papel de força motriz de progresso e da paz a nível
mundial”. Disse que o mundo está pior sem a URSS. Disse que “o socialismo é
preciso” e é uma “exigência da actualidade e do futuro”. Disse que o
capitalismo é um “sistema explorador, opressor, agressivo e predador”, que está
“a conduzir o mundo para a barbárie”. Disse que o fim da URSS nada teve a ver
com a Revolução de Outubro e os seus fundadores, e sim com o “modelo de
construção do socialismo” que se afastou do “ideal e do projeto comunistas”.
Disse que o “combate continua”.
O sr. Jerónimo disse
estas doçuras e os “media” reproduziram-nas sem escrúpulos nem escrutínio, como
se o sr. Jerónimo tivesse recomendado um restaurante em Évora ou os
congratulado os bombeiros voluntários de Coimbra. As “redes sociais”, que se
escandalizam diariamente com extraordinárias insignificâncias, não se escandalizaram
com o elogio fervoroso do maior ataque organizado à humanidade que a História
já registou. Ninguém saiu à rua em protesto. Ninguém estranhou. Ninguém, ou
quase ninguém, pensou que os desabafos do sr. Jerónimo, afinal um voto de fé na
brutalidade, na fome e no homicídio enquanto métodos de regulação das massas,
fugissem da normalidade quotidiana de um regime supostamente democrático. No
fundo, o sr. Jerónimo informou os portugueses de que não descansará até que,
espero que com nuances, estes sofram o que as incontáveis vítimas do comunismo
sofreram e sofrem. E, do alto da sua peculiar apatia, que os leva a
envergonhar-se dos “twits” do sr. Trump e a orgulhar-se da miséria que trazem
por casa, os portugueses acham bem.
Permitam-me evitar
equívocos. Ao contrário dos deuses do sr. Jerónimo e dos fiéis do sr. Jerónimo,
nunca passaria pela minha cabeça impedir um sujeito de confessar o que vai na
dele. A questão, obviamente, não é o sr. Jerónimo proferir insanidades, mas a
recepção que as insanidades suscitam. Em sociedades civilizadas, o louvor de
genocídios merece repulsa, sarcasmo ou pena do maluquinho que assim se exibe em
público. Em Portugal, homenagear psicopatas integra a categoria das notícias
“habituais”, a título de opinião discutível ou, quiçá, esclarecida.
De resto, o sr. Jerónimo
não é um maluquinho, ou pelo menos um maluquinho comum. É o chefe do terceiro
ou quarto partido nacional, o qual rivaliza com outro (?) partido leninista nos
votos, nos deputados, na demência e na ascendência sobre o bando que, descarada
e oficialmente, finge governar-nos. Se se tratasse de um lunático com bombo às
voltas ao coreto – e fosse tratado em conformidade –, a deplorável figura a que
o sr. Jerónimo se presta podia esgotar-se em si mesma, sem que daí viesse qualquer
mal ao mundo. Por azar, a misteriosa respeitabilidade de que o sr. Jerónimo
desfruta compromete o país, ridiculariza o país e torna o país cúmplice de uma
vasta parte do mal que, durante o último século, o mundo suportou de facto. Uma
coisa é certa: a Web Summit é óptima para mostrar ao “estrangeiro” aquilo que
somos. E quem quis ver viu que somos isto.
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