Há dias, Cavaco falou e não evitei certa
saudade. Não é saudade do homem. É saudade de alguém, ou de alguma coisa, que
não pertença à desgraceira que hoje temos.
A propósito do Grande Escândalo da semana
passada, perguntei aos meus botões porque é que os novos censores se ofenderam
tanto com os livrinhos “sexistas” da Porto Editora e não se ofendem com
milhares de obras literárias de facto, facilmente condenáveis por “sexismo”,
“racismo”, “xenofobia” “homofobia” ou qualquer outra calamidade equivalente. Dito
de maneira diferente: a que título, em Portugal, os novos censores ignoram as
inúmeras “discriminações” em Defoe ou Eliot, Twain ou Nabokov? Sensatos, os
meus botões responderam: porque os novos censores nunca leram nada assim, e se
leram não perceberam.
Na verdade, os novos censores exibiram vasta
incapacidade em perceber os exactos livrinhos da “polémica”, conjuntos de
exercícios e passatempos destinados a criancinhas de tenra idade. Conforme
Ricardo Araújo Pereira mostrou no Governo Sombra, as edições “para o menino” e
“para a menina” são rigorosamente iguais, excepto pelas ilustrações, assinadas
por autoras diferentes. No meio das semelhanças, os novos censores lá
conseguiram descobrir o rabisco de um labirinto cuja exigência era
aparentemente maior na versão masculina do que na feminina. Alguns dos novos
censores ainda estão a tentar sair de ambos.
Não estamos apenas no domínio da infantilidade:
a coisa já roça a perturbação mental. Ao longo dos séculos, os partidários das
repressões raramente se distinguiram pela inteligência. Os novos censores
distinguem-se pela assustadora falta dela. Essa deficiência impele-os a farejar
bibliotecas de creches, à cata de obras blasfemas para alimentar fogueiras. Ia
acrescentar que é melhor isso do que andarem na droga. Mas a droga talvez
envergonhe menos.
Naturalmente, o Grande Escândalo da semana
passada não está totalmente desligado do Grande Escândalo desta: a “aula” de
Cavaco Silva numa qualquer pândega do PSD. Cavaco falou e resmas de nulidades –
grosso modo, as mesmas que exigiram e aplaudiram a recolha dos livrinhos –
atropelaram-se para condenar o facto. Por definição, as nulidades não deviam
importar. Cavaco importa um bocadinho e, hoje, não só um bocadinho. Durante os
trinta anos em que influenciou o país, nunca me inspirou particular simpatia ou
antipatia, e frequentemente dei por mim a tentar escolher se lhe preferia as
óbvias virtudes ou se me repeliam as diversas limitações. Há dias, porém,
Cavaco falou e não evitei certa saudade.
Não é saudade do homem. É saudade de alguém, ou
de alguma coisa, que não pertença à desgraceira que hoje temos, por ironia e
fraqueza consagrada no final da presidência anterior. E o principal mérito de
Cavaco consistiu justamente em não “pertencer” – embora pertencesse mais do que
ele gostaria e do que os seus devotos julgam. Não sendo o herói imaculado que
estes imaginam, a comparação de Cavaco com os destroços vigentes eleva-o ao
céu. Apesar dos obstáculos, próprios e alheios, acabou por se assemelhar a um
estadista, emprestar à sua época uns vestígios de razoabilidade e,
ocasionalmente, ajudar a fingir que isto é um lugar frequentável. As espantosas
criaturas que, oficial e oficiosamente, agora distribuem ordens não merecem um
adjectivo que caiba num jornal familiar. E os ansiosos escusam de vir lembrar
os erros que Cavaco cometeu e os corruptos que Cavaco promoveu: por um lado, a
incompetência e a corrupção são essenciais à política; por outro, não me
interessa (e não preciso) argumentar que a “nomenclatura” actual é especialmente
incompetente ou corrupta. Ou demasiado matarruana até para os padrões caseiros.
O nosso problema é a “nomenclatura” ser –
desculpem o jargão técnico – doida varrida. No último ano e meio, sob as
“notícias” amestradas do “milagre económico” e uma oposição muda ou cúmplice,
desatou-se a transformar o país remendado e periférico da praxe num imenso
seminário de actividades circenses. Deixo a cada um a tarefa de decidir quem
são os malabaristas e os palhaços. Certo é que, em circunstâncias “normais”, o
episódio dos livrinhos da Porto Editora não passaria de um interlúdio cómico.
Nas circunstâncias presentes, é uma peça trágica, repleta de personagens
inverosímeis e unidimensionais: os que, no ócio, inventaram um pretexto para se
sentirem ultrajados; os que, nos “media” e nas “redes”, amplificaram o ultraje;
os que, no governo, proibiram o ultraje. É claro que, no tempo de Cavaco, tais
personagens já se contorciam por aí. A diferença é que, no tempo depois de
Cavaco, as personagens mandam, e mandam sozinhas. Vale que o caldo de toleima,
prepotência, fanatismo, ignorância e poder absoluto costuma correr bem, e tão
bem para as meninas quanto para os meninos.
Nota de
rodapé
Para quem não tenha habitado o planeta durante
o último século, o caso da Autoeuropa é uma pertinente aula prática sobre os
propósitos, os métodos e as consequências do socialismo “científico”. Há uma
empresa multinacional relevante para as dimensões da economia nacional, viável
há muitos anos e com um apreciável currículo de razoabilidade nas relações
entre empregadores e empregados. Há uma proposta, ou decisão, para alargar o
expediente aos sábados, com troca de folgas e aumento desproporcionado (no bom
sentido) dos salários. Há um bando de preguiçosos daninhos, de facto
serventuários do PCP, que toma aquilo de assalto e promove uma greve inédita.
Há uma enxurrada de referências cínicas à “luta” e aos “direitos”, aos
“piquetes” e à “paralisação”. Há a suspeita de que, não tarda, os donos da
coisa cansam-se desta Venezuela à beira-Sado e vão produzir carrinhos em
paragens menos folclóricas. Há a certeza de que, logo que os trabalhadores
fiquem sem trabalho nem dinheiro (mas com sete dias livres por semana), a culpa
será do capitalismo selvagem. Há esperança de que, sobre os escombros e a miséria,
o PCP decrete a vitória das forças revolucionárias. Não há esperança de que
isto sirva de lição.
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