terça-feira, 1 de agosto de 2017

Afinal, quem quis ir para além da troika?


 M. FÁTIMA BONIFÁCIO - Jornal Público

A enorme dose de austeridade que Costa impôs ao país, e que este engoliu sem dar por ela, era em parte totalmente desnecessária.

Já tudo foi dito e escrito sobre a irresponsabilidade, a incompetência, a mendacidade, as contradições e as omissões a que nas últimas semanas assistimos por parte do Governo e seus agentes a propósito da tragédia dos incêndios e do inconcebível desleixo que abriu as portas do paiol de Tancos. Não obstante, muitas das perguntas dirigidas ao primeiro-ministro, sobretudo as “mais parvas”, ficarão para sempre sem resposta cabal. Prova disso é a repetida afirmação de António Costa de que “tudo já foi esclarecido”, afirmação logo proferida quando a procissão ainda ia no adro e tudo estava por apurar.
Pouco importa. Desde que, em Portugal, as vacas desataram a voar, abriu a época da caça à verdade dos factos. Dantes, todos tinham o direito às suas opiniões; hoje em dia, todos têm o direito aos seus factos! Estes, enquanto tais, deixaram de contar; conta apenas a percepção pessoalíssima que cada um de nós tem deles. Em linguagem já proverbial: apenas contam as narrativas sobre os factos. E o que as tornará convincentes? A racionalidade que lhes preside? A plausibilidade que o senso comum lhes confere? Nada disso. Uma “narrativa” é tanto mais convincente quanto, muito pelo contrário, evitar ou dispensar a mobilização dessas capacidades cognitivas, limitando-se a falar aos sentimentos, a despertar afectos e emoções e a dizer o que as turbas desejam ouvir. Não se esqueça que vivemos em pleno pós-modernismo, de si mesmo um hiper-romantismo que, actualmente, galgou mais um patamar e ascendeu ao mais desbragado hiper-subjectivismo, que valida os chamados “factos alternativos”: entrámos na era da “pós-verdade”.
Desde o anúncio das vacas voadoras, se não já antes, o país vive descontraído e contente, imerso numa consoladora fantasia. Porquê? Porque as vacas voaram mesmo, o milagre da quadratura do círculo aconteceu pelas mãos do habilidoso António Costa e do seu acrobático ministro das Finanças. A generalidade do povo português não dá pelas falhas na engrenagem da “geringonça” e menos ainda se apercebe das patranhas que lhe impingem. A “narrativa” oficial apregoa que, apesar das reversões e reposições de tudo e mais alguma coisa, a “geringonça” conseguiu fechar o ano com um deficit de 2,1%, o mais baixo desde 1974, três décimas a menos do que fora estimado e prometido a Bruxelas. E, sobre esta proeza, a economia também se mexeu, tendo o PIB crescido 1,4% — principalmente graças ao turismo.
Durante a campanha eleitoral e mesmo depois dela, já no Governo, António Costa prometia que este milagre seria cumprido com base em duas coisas: o aumento do poder de compra resultante das reposições, e o investimento público. Ora nenhuma destas duas coisas se verificou: o consumo privado não disparou, e o investimento público — 1,6% do PIB — foi “o mais baixo desde 1995”, desde há 21 anos (PÚBLICO, 25.03.17, p.29). Porém, fontes governamentais, a começar pelo próprio Costa, continuaram a afirmar que a (suposta) quadratura do círculo se devera à aplicação da velha receita keynesiana, tão mal tratada pela aberração do neoliberalismo.
Ora, no mesmo PÚBLICO, S. Aníbal e P. Crisóstomo explicam a verdade dos factos. O que permitiu aquele histórico deficit, apesar de algumas “derrapagens” na despesa do Estado e de uma ligeira diminuição dos impostos indirectos? Antes de tudo, o célebre PERES – Programa excepcional de regularização de dívidas ao Fisco e à Segurança Social, que rendeu ao Estado 588 milhões de euros, um encaixe que muito ajudou a baixar o deficit dos 2,4% inicialmente previstos e prometidos a Bruxelas em Outubro, para os 2,1% alcançados no fim do ano.
Mas, se o PERES foi importantíssimo, “o principal contributo” para a diminuição do deficit “veio do investimento público”, que na propaganda socialista e da sua cauda de radicais seria a grande alavanca para o crescimento económico e consequente aumento do emprego. Ora o corte violento do investimento estatal “acabou por ajudar as contas do deficit em 0,3%” — três décimas a menos do que a troika exigira!
Mas temos ainda o que em Março não se sabia, ou estava no segredo dos Deuses: as cativações, cativações em doses maciças e nunca vistas — praticamente o dobro do que era habitual, representando ao todo uma poupança para o Estado de quase mil milhões de euros! Os serviços públicos, incluindo escolas e hospitais, queixaram-se de que lhes faltavam meios financeiros para cumprirem os seus encargos. Centeno ignorou os protestos dos serviços e manteve os cortes inalterados.
Tudo isto — PERES, corte radical no investimento público e cativações brutais de verbas inscritas no Orçamento para 2016 —, tudo isto constitui os ingredientes principais e decisivos da enorme austeridade que a “geringonça” continuou a impor ao país. E o país, largamente infantilizado, geralmente desinformado e alegremente ludibriado pela narrativa do governo, canta hossanas ao cocheiro da “geringonça”, António Costa. A avaliar pela candura da entrevista concedida ao PÚBLICO de 27 de Julho pelo líder parlamentar do Bloco, este acólito do Governo de Costa finge-se indignado com a dimensão das cativações aplicadas por Centeno, declarando com manifesta estultícia que “o Governo não tinha mandato político para fazer cativações deste nível”! O Bloco não lhe concedera poderes para tanto! Infelizmente, o ridículo não mata.
A enorme dose de austeridade que Costa impôs ao país, e que este engoliu sem dar por ela, era em parte totalmente desnecessária: Bruxelas apenas exigiu um deficit de 2,4%, mas Costa quis ir para além da troika e mostrar mais serviço do que lhe pediam — um deficit de 2,1%.

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