José Manuel
Fernandes - OBSERVADOR
O caso dos
livros para meninas e rapazes seria ridículo se não fosse trágico, novo sinal
do que está doente nestes dias em que se discute uma canção inocente de Chico
Buarque e se desculpa a javardice
Tinha de
acontecer, aconteceu: a censura regressou a Portugal sob a forma hipócrita de
“recomendação”. Livros vão desaparecer das livrarias porque
alguém entendeu que acentuavam “estereótipos de género” – e meter-se com a
“igualdade de género” é um dos crimes maiores da actualidade. Pior: esses
livros vão ser retirados “voluntariamente” pela editora, que talvez por ser a
maior do país e a que mais negócio faz com livros escolares a última coisa que
deseja é uma polémica com os nossos novos talibãs do politicamente correcto.
Este país não
cessa pois de me envergonhar.
Envergonha
pela audácia dos censores, que chegaram agora ao ponto de recomendar que livros
fossem retirados das livrarias — sim: retirados das livrarias e enviados para o
lixo. Podiam fazer como é normal em qualquer sociedade democrática: criticar os
livros, abrir porventura um debate sobre se é possível haver actividades
diferentes para meninas e rapazes, mas isso cobri-los-ia de ridículo (basta de resto olhar para os desenhos que
alegadamente teriam estereótipos de sexo para soltar uma valente gargalhada com
a parvoíce destes inquisidores). Mas em vez da discussão preferiram a
intimidação abusando do seu poder administrativo.
E envergonha
pelo servilismo do editor, porventura racional do ponto de vista do seu negócio
num país onde o Estado e os governos mandam em tudo, mas uma lástima se
pensarmos no que é a missão de quem imagina e produz livros.
Mas não me
surpreende que assim seja, pois estamos submetidos às estritas regras e códigos
de conduta da chamada “ideologia do género”, uma nova ortodoxia
contra a qual poucos levantam a voz. Mas que não pode passar sem que a
contestemos.
Até porque a
fúria destes indignados toca a todos – e tanto que toca que agora até agarrou
nas suas teias um ícone da esquerda planetária, o cantor Chico Buarque, de
repente acusado de machismo por causa da letra de uma canção.
Os versos de
Chico, perdoem-me a frontalidade, são tão inocentes como verdadeiros. Dizem
eles: “Quando teu coração suplicar/ Ou quando teu capricho exigir/ Largo
mulher e filhos e de joelhos vou te seguir.” Apenas isto, mas o suficiente
para se levantar o coro das almas ofendidas: essa relação homem-mulher “está
ultrapassada”, gritaram. E vozes femininas até acrescentaram que “essa mulher que ele evoca, não
sou, não é”, em textos onde se “desamigavam” do seu “muso”. Ora eu
pergunto, sem rodeios: já não há homens que abandonam mulheres e filhos? Não é
porventura isso mais frequente hoje do que nos arqueológicos anos 70 a que
querem amarrar Chico Buarque? E é ou não verdade, como mostram muitos estudos e
até reconhecem feministas históricas, que a “igualdade sexual” mais depressa
resultou em homens a trocarem as suas mulheres por outras mais novas do que em
verdadeira igualdade?
Não comecem
já a indignar-se, porque não estou a tirar nenhuma conclusão – estou a abrir
uma discussão. Não sobre se Chico ainda é “romântico”, mas sobre um tema tabu
que não se quer encarar: o de que nem tudo é igual na igualdade sexual. Aos que
duvidam recomendo a leitura de Why Is Sex Fun? The Evolution of Human Sexuality, de Jared
Diamond (o autor de obras tão conhecidas como Guns, Germs and Steel ou Collapse), mas
hoje não é o dia para esse debate – é apenas o dia para dizer que ele existe ao
contrário do que pretendem os polícias do pensamento.
E quando digo
polícias do pensamento não escolho estas palavras por acaso: ao estabelecer
limites ao que se pode dizer e ao que não pode ser debatido, ao controlar a
linguagem o que se pretende é tão simplesmente formatar o espaço público em
função de determinadas agendas políticas e de pouco inocentes messianismos. Não
há nenhuma originalidade nesta afirmação, apenas a recordação de que esse é o
mesmo caminho seguido pelos regimes totalitários genialmente retratados na
distopia de George Orwell 1984. O escritor, que conheceu bem de
perto os pesadelos dos fascismos europeus e do comunismo universal, inventou
mesmo uma palavra – newspeak – para retratar esse esforço de dominar as
mentes através do controle da linguagem. O politicamente correcto de hoje é,
com frequência, apenas a versão contemporânea do doublethink orwelliano.
A duplicidade
de critérios e o esforço para formatar o pensamento em função do que se
considera tolerável e do que se classifica como tabu andam de facto a par. E
vivem bem nas águas turvas em que nos movemos, medram ainda melhor nas mentes
pouco esclarecidas dos que saltitam de indignação em indignação sem grande
espaço para pensarem ou reflectirem.
Tomemos o
caso de uma controvérsia recente, daquelas que mal saiu das redes sociais: a
graçola obscena de um conhecido humorista em que se explorava a grave doença da mulher de Pedro Passos Coelho.
O nível de javardice da piada era tal que não devia ter servido para mais nada
senão para desqualificar o seu autor, de resto reincidente no
seu ofensivo mau gosto, mas mesmo assim houve quem se apresentasse quase como vítima.
Não vale a
pena perder tempo a comentar este caso, ainda menos a dar-lhe mais publicidade
– mas já vale a pena notar que muitas vezes este tipo de “humor” é apresentado
como sendo apenas “politicamente incorrecto”. Grave engano. Não há ali nada de
politicamente incorrecto (apesar de haver muito de politicamente motivado e
obsessivo), há apenas falta de humanidade e, lamento repeti-lo, aquilo a que
popularmente se chama javardice. Confundir as duas coisas é como confundir a
Estrada da Beira com a beira da estrada.
Eu sei que o
humor pode ser grotesco e nunca me passaria pela cabeça recomendar que fosse
retirado do ar (ou de uma livraria, se aí chegasse), tal como sei que o humor
pode ser ofensivo. O facto de o tolerar não me retira o direito de o criticar,
se necessário com toda a violência verbal da minha imaginação. Mas uma coisa é
brincar com coisas sérias, outra é pretender que isso viola das convenções dos
novos polícias do pensamento. Uma coisa é ser grotesco, outra é não desistir de
contestar ideias que se têm por incontestáveis. Por regra é até esse grotesco
que faz coro com o politicamente correcto.
Tomemos um
outro exemplo recente, o das declarações de André Ventura sobre ciganos. Uma
coisa é condenar o registo xenófobo em que estas foram feitas e questionar a
continuação do apoio do PSD a esse candidato, algo que já defendi preto no branco. Outra coisa
bem diferente é fazer de conta que não existe um problema com as comunidades
ciganas. Ora quando a ortodoxia pretende calar a existência de realidades
difíceis de abordar em nome da “não discriminação”, o que está a fazer é a
tentar tapar os olhos com uma peneira e, pior do que isso, a contribuir para
que aqueles que convivem diariamente com esses problemas se radicalizem em torno de estereótipos racistas.
É um tiro que sai pela culatra.
O meu colega
aqui das colunas de opinião do Observador Luís Aguiar-Conraria defende que, ao
criticarmos o discurso politicamente correcto, trazemos inevitavelmente agarrado o racismo e a xenofobia.
Permito-me discordar. Primeiro, por uma questão de princípio: se defendo que
todos os temas estão abertos à discussão não posso criar zonas interditas e
demarcar áreas tabu. Depois, e sobretudo, porque julgo que inverte a ordem dos
factores: o terreno onde facilmente medraram as sementes do populismo (e não
obrigatoriamente do racismo e da xenofobia) foi o terreno adubado por um
discurso dominante que tratava como párias todos os que não seguissem a mais
estrita ortodoxia da “filosofia de género” ou do multiculturalismo, para só citar
duas áreas especialmente sensíveis.
De resto este
radicalismo não desapareceu. Ainda agora a prestigiosa Universidade de Yale
mandou mutilar uma escultura no seu mais emblemático edifício porque esta podia
eventualmente ofender os nativos americanos, apesar de muitos considerarem
que o efeito foi precisamente o
contrário. Isto quase ao mesmo tempo que um programador da Google era
despedido por se atrever a divulgar um memorando onde discutia
a hipótese de as aptidões das mulheres serem diferentes das dos homens, um
debate que nenhum neuropsicólogo consideraria abusivo.
São apenas
dois de muitos excessos que resultam de um ambiente minado pela obsessão do
politicamente correcto e que criam, no mínimo, uma perplexidade favorável à
exploração populista. Da mesma forma que gritar “racismo” só porque se quer
discutir problemas relacionados com as comunidades ciganas pode cair muito bem
entre os que não conhecem essa conflitualidade, mas caem muito mal entre os que
vivem na sua vizinhança – que até são por regra, sem surpresa, mais pobres e
menos instruídos.
Num primeiro
momento excessos como o dos livros para meninas e rapazes ou polémicas como a
de Chico Buarque levar-nos-iam apenas ao desabafo de “estão todos doidos”. Mas
quando se passa daí a um acto objectivo de censura, passamos a ter de estar
alerta em nome da liberdade de expressão. Por fim, quando este ambiente se
torna opressivo, quando resulta de uma nova forma de fanatismo, só podemos
contrariá-lo sem complexos ou receios, pois é também ele que ajuda a cavar as
divisões e as incompreensões que abrem caminho ao populismo. E isso pode ser
tão verdade para o “rust belt” americano como para os subúrbios de Lisboa ou
Porto.
E um tempo de perversidade e de perversidades, este em que vivemos. Quem nos acode?
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