terça-feira, 4 de julho de 2017

O Estado português está entregue aos bichos?

João Miguel TavaresPúblico

As fragilidades demonstradas pelo Governo nas últimas duas semanas provam que, de facto, não há milagres. A vaca de António Costa deixou de voar.

É verdade que não morreram 64 pessoas – ainda –, mas, no campeonato da incompetência e do desprestígio do Estado, o assalto à base militar de Tancos não é menos grave do que o incêndio de Pedrógão Grande. A lista de armamento roubado revelada pelo El Español dá para iniciar uma pequena guerra, e não se transporta às costas, nem em dois sacos do IKEA. Se o Estado não consegue sequer proteger armamento militar, permitindo roubos de camioneta nas traseiras dos seus paióis, consegue proteger exactamente o quê?
Mais uma vez, ninguém soube explicar o que se passou. Mais uma vez, o ministro da tutela limitou-se a passear estupefacção pelo telejornal. Mais uma vez, ninguém se demitiu. Afinal, “estes roubos” – palavra do chefe do Estado-Maior do Exército – “podem acontecer em qualquer país e em qualquer Exército, desde que haja vontades e capacidades”. Em Pedrógão, a culpa foi da natureza do fogo. Em Tancos, foi da natureza do homem. Tudo 100% natural.
Orçamento da Defesa para 2017: 2149 milhões de euros. Será que não dava para arranjar uns trocos para pôr a funcionar o sistema de videovigilância de um armazém com explosivos potentíssimos e lança-granadas capazes de abater helicópteros? O supermercado da minha rua tem videovigilância para ver se não roubam agriões e latas de salsichas. O Bairro Alto tem videovigilância para ver turistas ébrios a vomitar nas esquinas. Mas um paiol do Exército contendo armamento capaz de demolir um prédio e matar milhares de pessoas não tem a dignidade de um bêbado nem de uma salsicha tipo Frankfurt. Bem-vindos à República Portuguesa.
E, das duas, uma: ou António Costa passou, em 15 dias, de ser o homem mais sortudo do planeta para ser o homem mais azarado do mundo, ou então aquilo que se está a passar no país não é obra nem da sorte, nem do azar. É obra da incompetência e de uma estratégia política e económica assumida pelo primeiro-ministro e pelo ministro das Finanças. É o reflexo de opções muito claras, que elevaram boys incapazes a cargos de poder – seja na Protecção Civil, seja no Exército, seja na liderança do Ministério da Defesa – e deram cabo, com as famosas “cativações”, dos meios básicos de sustentação do Estado. O dinheiro que existe para pagar a redução das 40 para as 35 horas de trabalho na função pública é o dinheiro que não existe para pagar atempadamente a reparação de antenas, vedações e sistemas de videovigilância. Sim, o Estado está a pagar melhor aos seus trabalhadores. Mas como, infelizmente, o dinheiro não dá para tudo, falta orçamento para comprar o material que permita aos trabalhadores fazerem o seu trabalho.
Foi assim, de garrote na mão, que em 2016 Portugal teve o menor investimento público desde que há registos (1960), com uma queda de 16,5% face a 2015. O desinvestimento não é só nas carrinhas do SIRESP ou no arame farpado de Tancos – basta ver o que se está a passar nos hospitais quando é preciso comprar um medicamento dispendioso. Temos um Estado máximo a prestar serviços mínimos. Os portugueses andam há ano e meio a fechar os olhos a tudo isto, encandeados pelo sorriso do primeiro-ministro. Já vai sendo hora de começarem a abrir a pestana e exigirem responsabilidades pelas manifestações contínuas de absoluto desleixo por parte de quem dirige o país. As fragilidades demonstradas pelo Governo nas últimas duas semanas provam que, de facto, não há milagres. A vaca de António Costa deixou de voar.

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