segunda-feira, 31 de julho de 2017

Campismo selvagem


Alberto Gonçalves - OBSERVADOR

Ano após ano há dois rituais infalíveis: um é o acampamento de Verão do Bloco de Esquerda, o outro é a minha crónica a pretexto. A rapaziada do BE não desiste. Eu não resisto. Tudo ali é engraçado.
Ano após ano, por esta altura, há dois rituais infalíveis: um é o acampamento de Verão do Bloco de Esquerda, o outro é a minha crónica a pretexto. A rapaziada do BE não desiste. Eu não resisto. Tudo no “evento” é engraçado, a começar pelo nome. Não sei se por fina ironia ou grosso analfabetismo, o “evento” chama-se Liberdade, o que produz o delicioso efeito de um “workshop” do Ku Klux Klan subordinado ao tema Tolerância. E daqui para a frente é sempre a descer. Ou a subir, se atendermos exclusivamente ao potencial cómico da coisa e, sobretudo, se esquecermos que a coisa influencia o governo da nação.
Um artigo babado no “Público”, também recorrente a cada final de Julho, é naturalmente a melhor fonte de informação disponível. O título do artigo só não é todo um programa porque o programa do acampamento é assaz vasto, mas dá uma ideia bastante aproximada da toleima em jogo: “Os jovens do Bloco vão dançar contra o racismo e estudar ‘O Capital’”. Notaram a diferença? Jovens menos “conscientes” poderiam estudar o racismo e dançar contra “O Capital”. Ou estudar matemática e tocar clarinete a favor do pastel de nata. Ou simplesmente ir à praia e dormir o dia inteiro.
Não é o caso de Izaura Solipa, menina que pertence à organização e, suponho, usa pseudónimo (no ano passado, a cicerone do “Público” fora a militante Ana Rosa, “de voz serena mas segura, e uns olhos castanhos rasgados”). Para a Izaura, “um político que não pense verdadeiramente nas relações todas que existem, como lemos o mundo, como intervir no mundo, em todos os espaços e esferas que frequentamos, um político que não tenha essa reflexão vai ter sempre um lado insuficiente”. A Izaura, que pensa nas relações todas, lê o mundo todo e intervém em todos os espaços e esferas, não corre risco de insuficiência. Nem ela, nem os 150 felizardos que, a troco de meros 40 euros, acorrerão este fim-de-semana a Oliveira do Hospital. Para quê?
Ora essa. Para testemunhar “um concerto do rapper e activista Chullage”. Para frequentar festas “femininas e queer” (ignoro se mistas ou separadas). Para integrar um “debate” (os debates do BE distinguem-se dos demais por estarem decididos à partida) alusivo às drogas “duras e leves”, “dicotomia” que, de acordo com Izaura, “é preciso desconstruir” (eu não disse?). Para ouvir uma conversa em volta de “Saúde Mental e Capitalismo” (sumário provável: quem não aprecia o comunismo deve ser maluco). A catequese – e os sermões a convertidos – não se resume a isto. As beatas Mortágua explicarão “O que é o BE”. Marisa Matias “ajudará a uma reflexão sobre a importância da linguagem”. O deputado Jorge Costa dissertará a propósito da “geringonça”. Etc.
Parece divertido? De certeza que será. Porém, sem querer menosprezar ninguém, tenho os meus momentos favoritos, colhidos directamente do programa do acampamento. Um deles é o “Não Engolimos Sapos – Situação do Povo Romani”. Terá a sua piada observar a desenvoltura com que os participantes louvarão a riqueza cultural da etnia em causa e, de seguida, marcharão para os “espaços permanentes” feminista e queer, dois sectores bastante prezados pelo “povo romani”.
Um segundo momento consiste em perceber de que maneira se concilia tanto bailarico contra o racismo com a palestra “Queremos viver na nossa cidade”, a previsível xenofobia enquanto reacção ao turismo e ao lamentável enriquecimento dos cidadãos.
Um terceiro momento é o “debate”/conversa “Movimentos Anti-imperialistas na América Latina”, que provará em definitivo os sucessos estrondosos de Lula, Chávez e daquele estadista do Uruguai que, por renúncia à higiene burguesa, criava fungos nos dedos dos pés.
O apogeu prende-se, sem dúvida, com a homilia do Bispo Louçã “Revolução Russa e Luta Feminista”. É garantido que Sua Eminência falará do direito de voto concedido às mulheres, da legalização do aborto e, em suma, da igualdade de “género” que a URSS promoveu. Não é garantido que mencione a inutilidade do referido voto, a legalização do genocídio em geral e o respeito pela paridade que, à imagem dos cavalheiros, conduzia as senhoras ao Gulag em números apreciáveis. Suspeito igualmente que não mencionará a criminalização da homossexualidade, pormenor que talvez perturbasse a pândega “queer”. Ou, muito provavelmente, não perturbaria nada, circunstância normal num acampamento que se intitula Liberdade e se destina a proibir o que calha. A palavra a Izaura Solipa: “Não pode haver racismo, xenofobia, sexismo, ciganofobia…” Nem “ciganofobia”, Deus meu? O que sobra, então?
Sobra um processo de “educação” obviamente evocativo e caricatural do Komsomol leninista, da Gioventù Italiana ou da nossa Mocidade Portuguesa, consoante as preferências. Por mim, prefiro associar os acampamentos do BE ao Templo do Povo, o projecto de “socialismo apostólico” que convenceu um milhar de tontinhos a seguir um charlatão até à selva da Guiana e a fundar aí um enclave de demência. Em Jonestown, merecida homenagem ao charlatão, os tontinhos acreditaram nas patranhas de “Jim” Jones acerca dos perigos do “imperialismo” e das virtudes “revolucionárias”. Mal aquilo descambou, acreditaram quando ele os instigou ao suicídio por cianeto. Admito que, no acampamento do BE, não seja esse o assunto do “debate” “Direito a Morrer com Dignidade”. Ali, a ideia é viver sem dignidade nenhuma.


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