Guilherme D'Oliveira Martins - jornal Público
A sua obsessão com o défice,
era a recusa do fatalismo do atraso e da dependência. Por isso, era
intransigente no rigor e na disciplina. Temos já saudades da sua voz.
Ao longo de mais de trinta
anos de convivência e de muitas reflexões comuns sobre os temas que mais
preocupavam Henrique Medina Carreira, só colhi boas lições e penso ser
indispensável não as esquecer. Para quem o conhecia mal, talvez fosse excessivo
na manifestação das suas ideias, no entanto, conhecendo-o bem, devo dizer que
sempre encontrei nele sempre a grande preocupação de ser rigoroso no
fundamentar das suas análises.
Um dia, quando alguém acusou
o seu pessimismo, respondeu que era apenas realismo. Pessoalmente, penso que
era o salutar pessimismo de inteligência que nos obriga a ponderarmos o modo
como se conduzem os negócios públicos e se defende o bem comum. Era incómodo,
sim, mas tinha uma grande generosidade, de quem não gostava de deixar por dizer
as críticas que tinha para fazer. Era, a um tempo, sincero e corajoso. E assim,
eticamente, sempre o encontrei com a mesma verticalidade e coerência. Ele dizia
– “Como não tenho que agradar, digo o que devo dizer, doa a quem doer!” E isso
lhe agradeci sempre. No meu caso, foi sempre fiel à nossa amizade, sempre me
disse quando discordava, e sempre me deu força quando assim entendia. E com que
insistência dizia – não receie, avance, avance! Não esqueço tantos momentos em
que testemunhei que a visão talvez mais negra das coisas, correspondia ao seu
desejo de que o mundo da vida se pudesse endireitar um pouco. Era daqueles que
Sá de Miranda dizia serem de mais quebrar que torcer. E se hoje escrevo a
recordá-lo é pela razão de que não podemos esquecer os seus principais combates.
E há sete lições que não podem ser esquecidas:
1 - Primado do serviço da
democracia e da causa pública – os dinheiros públicos são dos contribuintes e a
disciplina é obrigação de todos. E o seu exemplo merece referência, uma vez que
sempre foi um íntegro praticante do serviço de todos.
2 - Luta sem tréguas contra o
desperdício – a indisciplina contra a qual combateu com persistência e valentia
levava ao desperdício, e por cada cêntimo mal gasto muitos cidadãos eram
privados dos seus direitos e da dignidade essencial.
3 - Atenção permanente aos riscos
de corrupção e à sua prevenção – de facto, a terrível corrupção poderia estar
onde menos se esperaria, começava num pequeno favor e cavalgava até ao crime
ignóbil. Daí a necessidade de prevenir a fraude e de melhorar o regime
sancionatório, com persistência e inteligência.
4 - Combate ao endividamento
irresponsável – as economias de casino, que Medina Carreira abominava, foram-se
instalando, e com elas uma febre prestamista e tudo o que gerou a crise
financeira e a ilusão de confundir riqueza com aparência monetária.
5 - A necessidade de compreender
que sem produzir não podemos gastar – de facto, há um equilíbrio que tem de
existir entre o que criamos e o que consumimos, entre a riqueza das nações e a
preocupação com a justiça. É indispensável, sempre entendermos que o exemplo da
administração sábia de José do Egipto não pode ser esquecida, sendo permanente
e não momentânea.
6 - A adequação entre os meios
disponíveis e os fins económicos é essencial – uma vez que as necessidades
apenas podem ser satisfeitas se soubermos exatamente aquilo de que podemos
dispor.
7 - A justiça distributiva exige
poupança e sobriedade – como estudioso que foi de toda a vida do sistema fiscal
e da ligação entre equidade e eficiência (não esqueço o seu estudo sobre o
património), sabia que a sabedoria económica obriga, antes do mais à prudência
permanente.
E lembro as longas conversas
com José da Silva Lopes, designadamente a recordar o tempo em que os
empréstimos em divisas eram para solver primeiras necessidades (de energia ou
alimentação), mas sobretudo a apelar a termos os pés assentes na terra e a não
construir castelos no ar… António Barreto disse que o exemplo de Henrique
Medina Carreira tem a ver com o alerta aos portugueses para desconfiarem da
dívida e da dependência. É a síntese essencial. A sua obsessão com o défice,
era a recusa do fatalismo do atraso e da dependência. Por isso, era
intransigente no rigor e na disciplina. Temos já saudades da sua voz…
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