O consenso — Espero que, apesar dos acanhados limites
da sua inteligência e da sua quase completa incultura histórica, os promotores
do consenso — que hoje vão do Presidente da República ao mais pequeno oportunista
do CDS; e, como de costume, vêm da classe dirigente e dos grupos privilegiados
da sociedade portuguesa — percebam a figura triste e nociva que andam a fazer.
O consenso foi desde o duvidoso princípio do nosso liberalismo a suprema
ambição de quase todos os regimes e governos (tirando, claro, o Terror de D.
Miguel, o de Afonso Costa e a Ditadura de Salazar). Nem sempre se chamou
consenso. Teve vários nomes: conciliação, partilha, fusão, pastel, marmelada,
amalgação, convivência, juste milieu, regeneração e união nacional (muito antes
do Estado Novo). E conduziu invariavelmente às piores catástrofes, quando não
conduziu ao longo monopólio do poder de um único partido.
A história começa em 1823-25, depois da Vila-Francada,
quando D. João VI decidiu seguir uma via média que sossegasse tanto os
jacobinos vintistas como os apostólicos realistas, prometendo vagamente uma
Carta Constitucional, e indo buscar os representantes da Inglaterra e da França
(que ocupava a Espanha), respectivamente, Palmela e Subserra, os dois sem a
mais leve influência em Portugal, para com eles apresentar ao “povo” um
ministério ecuménico, que só existia na fantasia dos “moderados”, e depressa
caiu. E, já agora, o Rei também resolveu, para acalmar “os ânimos”, fazer a paz
com D. Pedro e aceitar a “união de coroas”, que por natureza só se lhe aplicava
a ele e pela qual Portugal reconhecia oficialmente o Brasil (1825). Isto causou
a maior confusão “de interesses e de homens”, para parafrasear Oliveira
Martins.
Mas D. Pedro arranjou um sarilho muito pior. Pela
necessidade de não parecer absoluto no seu novo Império e, como de costume,
preocupado com a harmonia e o acordo da “família portuguesa”, outorgou uma
Carta Constitucional, que ninguém lhe pedira e ninguém lhe agradecia, congeminada
no Rio, entregue em Lisboa por um emissário inglês e, no fim, imposta a
Portugal por um pronunciamento de Saldanha. Mas mais grave do que a Carta era a
solução dinástica: D. Pedro deu aos liberais uma Câmara electiva e aos
realistas uma Câmara dos Pares (hereditária, como se calculará) que ele mesmo
escolheu. Para resolver o caso bicudo da sucessão nomeou D. Miguel Regente, se
e quando ele jurasse a Carta e mais tarde se casasse com a filha dele, Dona
Maria, na altura com 7 anos. Era a solução das notabilidades e dos chefes
moderados e sérios dos dois lados do conflito larvar do reino. Da herança do
bom rei João, D. Pedro ficava com o Brasil e o irmão com Portugal:
metade-metade, como aconselhava o bom senso. A guerra civil explodiu dali a
semanas (1826) e durou até 1834, deixando para trás centenas de milhares de
mortos (entre militares e população civil) e o país exausto e num caos
impossível de descrever aqui como ele merece.
A paz de 1834 tornou a pôr em cena os fervorosos
adeptos do “consenso”, de que, como se sabe, D. Pedro fazia parte. Em Setembro,
antes de morrer, nomeou Palmela. E Palmela, por excelência o homem das
combinações, partiu em busca da concórdia universal. Essa concórdia era agora,
segundo a opinião da opinião “respeitável”, a amalgação (uma palavra do
vocabulário militar francês) entre os liberais conservadores e os miguelistas
que ainda mandavam no norte, no centro e no interior (alguns “grandes” do
Reino, pequena nobreza territorial, morgados, antigos oficiais da já extinta
Milícia). Bastaram uns meses para o nobre duque, o primeiro presidente do
Conselho português, se ver obrigado a fugir pelos telhados de Lisboa para não
ser morto pela plebe jacobina. Nunca mais se atreveu a mostrar a cara e o
governo que continuou em funções, dirigido por Silva Carvalho, quis logo
fabricar um novo “consenso”, desta vez entre os moderados e os radicais do
liberalismo. Falhou também e a inevitável consequência foi a chamada “revolução
de Setembro” e uma segunda guerra civil.
Esta excelentíssima emergência do radicalismo à tona
das águas turvas de Lisboa, do Porto e do país provocou um ano de perseguições
(com generosa aplicação aos incréus de tortura e cadeia). Em Março de 38, os
Batalhões Nacionais, braço armado da revolução, atraídos ao Rossio pelos chefes
que tinham derrotado o exército da Carta e uma dúzia de civis “arrependidos”
(Costa Cabral , por exemplo) acabaram cercados e fuzilados por tropas
“seguras”, no célebre “massacre do Rossio”. Muitas dezenas morreram e durante
uns dias apareceram cadáveres a boiar no Tejo.
Esta “vitória” permitiu ao Portugal letrado pensar
outra vez na sua indispensável união. Os deputados a uma nova Constituinte,
eleita pelos setembristas, tentaram fabricar uma Constituição tanto quanto
possível parecida com a Carta (abolida em 36). E fabricaram. Parecia que o
consenso estava finalmente estabelecido e, mais, institucionalizado. Durou
quatro anos. Em 42, o conde de Santa Maria, governador das armas do Porto,
incitado pelo ministro da Justiça de um ministério centrista, Costa Cabral,
proclamou a Carta e Costa Cabral voltou para Lisboa, onde o receberam em
triunfo.
O regime que se seguiu, presidido pelo marechal duque
da Terceira, adoptou, que outra coisa!, o juste milieu e só excluía e de facto
só excluiu os impenitentes do miguelismo e do jacobinismo, que recusavam a lei
constitucional em vigor. Esta política ficou conhecida pelo nome de
exclusivismo, o que mostra bem a educação histórica do indigenato. De qualquer
maneira esta clássica tentativa de “consenso”, que chegara de França, não se
aguentou muito tempo. Cabral pagava pontualmente ao funcionalismo do Estado,
restabeleceu relações normais com Roma e a hierarquia da Igreja, tomou algumas
medidas para aumentar a segurança da população e começou hesitantemente, com empréstimos
a curto prazo, o futuro programa de “melhoramentos materiais” (só estradas, por
enquanto). De nada lhe valeu. Perseguido pelo intenso ódio dos setembristas,
que se manifestavam de norte a sul numa imprensa livre; insultado, caluniado,
caricaturado, perante a indiferença e o deleite dos que ele protegia e dos que
aspiravam a substituí-lo, Cabral ficou isolado, com o único apoio da rainha e
um segmento do exército, cada vez menor, que obedecia a Terceira. Se houvesse
um embaraço ou um erro, cairia logo. E em 46 houve um embaraço financeiro, que
o forçou a decretar o célebre “imposto de repartição”, igual ao que existia em
França; e também um erro incompreensível, a lei sanitária, que proibia que se
enterrassem os mortos nas igrejas e os mandava enterrar nos cemitérios. Daqui
nasceu a revolta dita da Maria da Fonte e logo a seguir outra guerra civil, a
da Patuleia.
A guerra, ela própria, não passou de uma mascarada, em
que ainda assim morreram 3.000 homens, que divertia o Times mas que enfurecia
as Potências. A Inglaterra e a Espanha depressa resolveram pôr os portugueses
na ordem. Palmerston ditou os termos da paz e um exército espanhol submeteu os
rebeldes do Porto. E a seguir Costa Cabral , que andava escondido sob o
disfarce de embaixador em Madrid, voltou a Portugal e pretendeu discretamente
conciliar as facções sem perceber que o chefe do exclusivismo nunca podia ser o
chefe da concertação. Provocado por isto, e pelo regresso de Costa Cabral ao
favor da rainha e à presidência do Conselho em 1850, Saldanha revoltou o
exército do norte e desceu para Lisboa. Ao seu encontro foi o exército do sul,
comandado pelo marido da rainha, D. Fernando. Nem D. Fernando, nem Saldanha
queriam combater: e não combateram. Vieram juntos para Lisboa e Saldanha tomou conta
do poder, que com a fuga de Cabral estava vago. Era a Regeneração.
A Regeneração era finalmente o consenso. Como disse
João Franco, na essência servia para “apascentar duas clientelas”, alternada ou
simultaneamente, a dos cartistas e a dos setembristas. Saldanha começou por
neutralizar o exército, promovendo todos os oficiais (miguelistas, cartistas ou
setembristas) ao posto a que por antiguidade tinham direito. Esta
“promoção-monstro” transformou o exército numa agremiação passiva e
burocrática, que para não perturbar a “escala” daí em diante recusou qualquer
aventura política. As clientelas da esquerda e da direita foram logo
distribuídas pelo país, e durante sessenta anos sugaram o “povinho” com
entusiasmo e minúcia. O primeiro governo da Regeneração, o de Saldanha,
misturava toda a gente e até apanhava gente nova, como Fontes Pereira de Melo.
Durou cinco anos. A seguir veio um governo de Loulé (tio do rei), ou seja, dos
setembristas convertidos à Carta, que durou de 1856 a 1865 com um pequeno
intervalo de um ano.
Em 1865, a guerra do Paraguai (1864-1870),
desvalorizando a moeda brasileira e reduzindo as remessas dos emigrantes, que
cobriam um terço do défice anual da balança de pagamentos, provocou uma crise
duradora. E a crise foi, como sempre, a grande oportunidade para os loucos e
aventureiros que rondavam o regime e “a gente de bem”. Mas, significativamente,
no meio da balbúrdia os partidários do consenso criaram a Fusão, que juntava a
ala direita do Partido Histórico de Loulé (a “unha branca”), herdeiro da
Patuleia, com a ala esquerda da direita, que Fontes comandava. Este suavíssimo
arranjo aguentou-se perto de dois anos e caiu perante a denominada “Janeirinha”
(um levantamento contra o imposto de consumo e uma reforma administrativa que
diminuía o número de concelhos) deixando como de costume o caos atrás de si.
Mas, por sorte, a guerra do Paraguai acabou e em
Outubro de 1871 Fontes tomou conta do país, com pequenas intermitências, até
1886. O Partido Progressista (resultado de outra “fusão”, a do Partido
Reformista, fundado pelo radicalismo moderno e pela “unha negra” do tempo de
Loulé, com o Partido Histórico) caiu com os desastres de 1867-68, a inflação e
a mobilização popular dos “mitingueiros”. Daí nasceram os governos de
“concentração partidária” e “extra-partidários”, que achavam eles reuniam o
consenso do país político e letrado. Não reuniam. Quando as coisas acalmaram,
começou o rotativismo, que se aguentou com várias deformações até 1906, quando
D. Carlos entregou o poder ao Partido Regenerador-Liberal de João Franco, um
partido da burguesia bem-pensante, e declarou em público que o antigo regime
era um “gâchis” e devia ser rapidamente liquidado. Franco desapareceu de cena
com o assassinato. No curto reinado de D. Manuel II (1908-1910) houve 6
governos e ninguém se entendia com ninguém, nem os republicanos entre si.
Da República não vale a pena falar: foi o terrorismo
até Dezembro de 1917 e a seguir uma ilimitada corrupção, que se julgava
favorável a Portugal inteiro, sem distinções geográficas e sociais. Salazar
extinguiu estes festejos e estabeleceu a ditadura que se conhece ou que talvez
hoje, 2017, já seja uma memória vaga. Mas mesmo Salazar não se coibiu de
ridicularizar o consenso. A oposição pedia liberdade. Mas para quê? Para, como
antigamente procurar a união dos democratas? Se era de união que se tratava,
ela já existia e chamava-se União Nacional, que, como se sabia, não era um
partido. Em 1968, quando Caetano chegou, chegou preso à guerra colonial e às
polícias, o que não o impediu, segundo as suas próprias palavras, de procurar
sempre o “ponto de equilíbrio” da “razão e do senso”.
Na nossa II (ou III) República, recebemos sem protesto
o Bloco Central e agora temos os propagandistas do consenso. Ponham o consenso
a governar e verão o que arranjam.
Sem comentários:
Enviar um comentário