segunda-feira, 3 de abril de 2017

O consenso


Vasco Pulido Valente - OBSERVADOR

O consenso — Espero que, apesar dos acanhados limites da sua inteligência e da sua quase completa incultura histórica, os promotores do consenso — que hoje vão do Presidente da República ao mais pequeno oportunista do CDS; e, como de costume, vêm da classe dirigente e dos grupos privilegiados da sociedade portuguesa — percebam a figura triste e nociva que andam a fazer. O consenso foi desde o duvidoso princípio do nosso liberalismo a suprema ambição de quase todos os regimes e governos (tirando, claro, o Terror de D. Miguel, o de Afonso Costa e a Ditadura de Salazar). Nem sempre se chamou consenso. Teve vários nomes: conciliação, partilha, fusão, pastel, marmelada, amalgação, convivência, juste milieu, regeneração e união nacional (muito antes do Estado Novo). E conduziu invariavelmente às piores catástrofes, quando não conduziu ao longo monopólio do poder de um único partido.
A história começa em 1823-25, depois da Vila-Francada, quando D. João VI decidiu seguir uma via média que sossegasse tanto os jacobinos vintistas como os apostólicos realistas, prometendo vagamente uma Carta Constitucional, e indo buscar os representantes da Inglaterra e da França (que ocupava a Espanha), respectivamente, Palmela e Subserra, os dois sem a mais leve influência em Portugal, para com eles apresentar ao “povo” um ministério ecuménico, que só existia na fantasia dos “moderados”, e depressa caiu. E, já agora, o Rei também resolveu, para acalmar “os ânimos”, fazer a paz com D. Pedro e aceitar a “união de coroas”, que por natureza só se lhe aplicava a ele e pela qual Portugal reconhecia oficialmente o Brasil (1825). Isto causou a maior confusão “de interesses e de homens”, para parafrasear Oliveira Martins.
Mas D. Pedro arranjou um sarilho muito pior. Pela necessidade de não parecer absoluto no seu novo Império e, como de costume, preocupado com a harmonia e o acordo da “família portuguesa”, outorgou uma Carta Constitucional, que ninguém lhe pedira e ninguém lhe agradecia, congeminada no Rio, entregue em Lisboa por um emissário inglês e, no fim, imposta a Portugal por um pronunciamento de Saldanha. Mas mais grave do que a Carta era a solução dinástica: D. Pedro deu aos liberais uma Câmara electiva e aos realistas uma Câmara dos Pares (hereditária, como se calculará) que ele mesmo escolheu. Para resolver o caso bicudo da sucessão nomeou D. Miguel Regente, se e quando ele jurasse a Carta e mais tarde se casasse com a filha dele, Dona Maria, na altura com 7 anos. Era a solução das notabilidades e dos chefes moderados e sérios dos dois lados do conflito larvar do reino. Da herança do bom rei João, D. Pedro ficava com o Brasil e o irmão com Portugal: metade-metade, como aconselhava o bom senso. A guerra civil explodiu dali a semanas (1826) e durou até 1834, deixando para trás centenas de milhares de mortos (entre militares e população civil) e o país exausto e num caos impossível de descrever aqui como ele merece.
A paz de 1834 tornou a pôr em cena os fervorosos adeptos do “consenso”, de que, como se sabe, D. Pedro fazia parte. Em Setembro, antes de morrer, nomeou Palmela. E Palmela, por excelência o homem das combinações, partiu em busca da concórdia universal. Essa concórdia era agora, segundo a opinião da opinião “respeitável”, a amalgação (uma palavra do vocabulário militar francês) entre os liberais conservadores e os miguelistas que ainda mandavam no norte, no centro e no interior (alguns “grandes” do Reino, pequena nobreza territorial, morgados, antigos oficiais da já extinta Milícia). Bastaram uns meses para o nobre duque, o primeiro presidente do Conselho português, se ver obrigado a fugir pelos telhados de Lisboa para não ser morto pela plebe jacobina. Nunca mais se atreveu a mostrar a cara e o governo que continuou em funções, dirigido por Silva Carvalho, quis logo fabricar um novo “consenso”, desta vez entre os moderados e os radicais do liberalismo. Falhou também e a inevitável consequência foi a chamada “revolução de Setembro” e uma segunda guerra civil.
Esta excelentíssima emergência do radicalismo à tona das águas turvas de Lisboa, do Porto e do país provocou um ano de perseguições (com generosa aplicação aos incréus de tortura e cadeia). Em Março de 38, os Batalhões Nacionais, braço armado da revolução, atraídos ao Rossio pelos chefes que tinham derrotado o exército da Carta e uma dúzia de civis “arrependidos” (Costa Cabral , por exemplo) acabaram cercados e fuzilados por tropas “seguras”, no célebre “massacre do Rossio”. Muitas dezenas morreram e durante uns dias apareceram cadáveres a boiar no Tejo.
Esta “vitória” permitiu ao Portugal letrado pensar outra vez na sua indispensável união. Os deputados a uma nova Constituinte, eleita pelos setembristas, tentaram fabricar uma Constituição tanto quanto possível parecida com a Carta (abolida em 36). E fabricaram. Parecia que o consenso estava finalmente estabelecido e, mais, institucionalizado. Durou quatro anos. Em 42, o conde de Santa Maria, governador das armas do Porto, incitado pelo ministro da Justiça de um ministério centrista, Costa Cabral, proclamou a Carta e Costa Cabral voltou para Lisboa, onde o receberam em triunfo.
O regime que se seguiu, presidido pelo marechal duque da Terceira, adoptou, que outra coisa!, o juste milieu e só excluía e de facto só excluiu os impenitentes do miguelismo e do jacobinismo, que recusavam a lei constitucional em vigor. Esta política ficou conhecida pelo nome de exclusivismo, o que mostra bem a educação histórica do indigenato. De qualquer maneira esta clássica tentativa de “consenso”, que chegara de França, não se aguentou muito tempo. Cabral pagava pontualmente ao funcionalismo do Estado, restabeleceu relações normais com Roma e a hierarquia da Igreja, tomou algumas medidas para aumentar a segurança da população e começou hesitantemente, com empréstimos a curto prazo, o futuro programa de “melhoramentos materiais” (só estradas, por enquanto). De nada lhe valeu. Perseguido pelo intenso ódio dos setembristas, que se manifestavam de norte a sul numa imprensa livre; insultado, caluniado, caricaturado, perante a indiferença e o deleite dos que ele protegia e dos que aspiravam a substituí-lo, Cabral ficou isolado, com o único apoio da rainha e um segmento do exército, cada vez menor, que obedecia a Terceira. Se houvesse um embaraço ou um erro, cairia logo. E em 46 houve um embaraço financeiro, que o forçou a decretar o célebre “imposto de repartição”, igual ao que existia em França; e também um erro incompreensível, a lei sanitária, que proibia que se enterrassem os mortos nas igrejas e os mandava enterrar nos cemitérios. Daqui nasceu a revolta dita da Maria da Fonte e logo a seguir outra guerra civil, a da Patuleia.
A guerra, ela própria, não passou de uma mascarada, em que ainda assim morreram 3.000 homens, que divertia o Times mas que enfurecia as Potências. A Inglaterra e a Espanha depressa resolveram pôr os portugueses na ordem. Palmerston ditou os termos da paz e um exército espanhol submeteu os rebeldes do Porto. E a seguir Costa Cabral , que andava escondido sob o disfarce de embaixador em Madrid, voltou a Portugal e pretendeu discretamente conciliar as facções sem perceber que o chefe do exclusivismo nunca podia ser o chefe da concertação. Provocado por isto, e pelo regresso de Costa Cabral ao favor da rainha e à presidência do Conselho em 1850, Saldanha revoltou o exército do norte e desceu para Lisboa. Ao seu encontro foi o exército do sul, comandado pelo marido da rainha, D. Fernando. Nem D. Fernando, nem Saldanha queriam combater: e não combateram. Vieram juntos para Lisboa e Saldanha tomou conta do poder, que com a fuga de Cabral estava vago. Era a Regeneração.
A Regeneração era finalmente o consenso. Como disse João Franco, na essência servia para “apascentar duas clientelas”, alternada ou simultaneamente, a dos cartistas e a dos setembristas. Saldanha começou por neutralizar o exército, promovendo todos os oficiais (miguelistas, cartistas ou setembristas) ao posto a que por antiguidade tinham direito. Esta “promoção-monstro” transformou o exército numa agremiação passiva e burocrática, que para não perturbar a “escala” daí em diante recusou qualquer aventura política. As clientelas da esquerda e da direita foram logo distribuídas pelo país, e durante sessenta anos sugaram o “povinho” com entusiasmo e minúcia. O primeiro governo da Regeneração, o de Saldanha, misturava toda a gente e até apanhava gente nova, como Fontes Pereira de Melo. Durou cinco anos. A seguir veio um governo de Loulé (tio do rei), ou seja, dos setembristas convertidos à Carta, que durou de 1856 a 1865 com um pequeno intervalo de um ano.
Em 1865, a guerra do Paraguai (1864-1870), desvalorizando a moeda brasileira e reduzindo as remessas dos emigrantes, que cobriam um terço do défice anual da balança de pagamentos, provocou uma crise duradora. E a crise foi, como sempre, a grande oportunidade para os loucos e aventureiros que rondavam o regime e “a gente de bem”. Mas, significativamente, no meio da balbúrdia os partidários do consenso criaram a Fusão, que juntava a ala direita do Partido Histórico de Loulé (a “unha branca”), herdeiro da Patuleia, com a ala esquerda da direita, que Fontes comandava. Este suavíssimo arranjo aguentou-se perto de dois anos e caiu perante a denominada “Janeirinha” (um levantamento contra o imposto de consumo e uma reforma administrativa que diminuía o número de concelhos) deixando como de costume o caos atrás de si.
Mas, por sorte, a guerra do Paraguai acabou e em Outubro de 1871 Fontes tomou conta do país, com pequenas intermitências, até 1886. O Partido Progressista (resultado de outra “fusão”, a do Partido Reformista, fundado pelo radicalismo moderno e pela “unha negra” do tempo de Loulé, com o Partido Histórico) caiu com os desastres de 1867-68, a inflação e a mobilização popular dos “mitingueiros”. Daí nasceram os governos de “concentração partidária” e “extra-partidários”, que achavam eles reuniam o consenso do país político e letrado. Não reuniam. Quando as coisas acalmaram, começou o rotativismo, que se aguentou com várias deformações até 1906, quando D. Carlos entregou o poder ao Partido Regenerador-Liberal de João Franco, um partido da burguesia bem-pensante, e declarou em público que o antigo regime era um “gâchis” e devia ser rapidamente liquidado. Franco desapareceu de cena com o assassinato. No curto reinado de D. Manuel II (1908-1910) houve 6 governos e ninguém se entendia com ninguém, nem os republicanos entre si.
Da República não vale a pena falar: foi o terrorismo até Dezembro de 1917 e a seguir uma ilimitada corrupção, que se julgava favorável a Portugal inteiro, sem distinções geográficas e sociais. Salazar extinguiu estes festejos e estabeleceu a ditadura que se conhece ou que talvez hoje, 2017, já seja uma memória vaga. Mas mesmo Salazar não se coibiu de ridicularizar o consenso. A oposição pedia liberdade. Mas para quê? Para, como antigamente procurar a união dos democratas? Se era de união que se tratava, ela já existia e chamava-se União Nacional, que, como se sabia, não era um partido. Em 1968, quando Caetano chegou, chegou preso à guerra colonial e às polícias, o que não o impediu, segundo as suas próprias palavras, de procurar sempre o “ponto de equilíbrio” da “razão e do senso”.
Na nossa II (ou III) República, recebemos sem protesto o Bloco Central e agora temos os propagandistas do consenso. Ponham o consenso a governar e verão o que arranjam.

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