domingo, 21 de agosto de 2016

A herança de Mao Tsé-Tung


Luís Cunha - Diário de Notícias

Armada do "pensamento de Mao Tsé-Tung", a atual geração de dirigentes chineses, liderada por Xi Jinping, recorre à cartilha ideológica legada pelo fundador da China comunista como forma de legitimação política. Um regresso ao passado que branqueia os monumentais desaires do revolucionário que esteve à beira de fazer implodir a nação renascida. A história do camponês de Hunan, alcandorado a figura gigante do século XX, nunca será imparcial. Morreu há 40 anos.
Volvidas quatro décadas sobre a morte do Imperador comunista, o culto de Mao Tsé-Tung teima em não desaparecer da China. "Não devemos desistir do marxismo-leninismo e do pensamento de Mao Tsé-Tung, caso contrário, seremos desprovidos da nossa essência" - adverte o Presidente Xi Jinping, por muitos considerado o genuíno herdeiro político do homem que ainda hoje vigia a praça de Tiananmen com o seu olhar emoldurado.
É também aí, na histórica arena central de Pequim, onde proclamou o nascimento da República Popular da China (RPC), que repousam os restos mortais daquele que foi considerado o grande responsável por algumas das páginas mais negras da China moderna. Canonizado por uns, diabolizado por outros, a memória de Mao nunca repousará em paz.
O Presidente vitalício do Partido Comunista Chinês (PCC) faleceu no dia 9 de Setembro de 1976, aos 82 anos, e logo chegaram a Pequim as muitas mensagens de condolências de todos os países, incluindo Portugal. O Ocidente vergava-se ao legado do homem que unificara a China, criara o "terceiro mundo" e fizera frente às superpotências da guerra fria. Apenas a população de Taiwan, a ilha onde o rival nacionalista Chiang Kai-chek se refugiara, desceu às ruas para manifestar o seu júbilo pela morte do líder comunista.
Durante oito dias, centenas de milhares de chineses puderam prestar um último tributo ao líder que, contra todas as probabilidades, fora capaz de fazer a revolução e transformar a China num Estado-nação. Por decisão do Comité Central do PCC os governos, os partidos e os "amigos estrangeiros" não foram convidados a participar no luto nacional. A volátil situação política que então se vivia, talvez explicasse esta medida pouco diplomática. Apenas uma coroa de flores, em nome do ditador romeno Nicolae Ceausescu, destoava do embargo imposto pelas autoridades chinesas.
No telegrama de condolências enviado ao Primeiro-ministro chinês, o Presidente da República Portuguesa, Ramalho Eanes, considerava Mao "um dos maiores estadistas deste século". Menos comedido, o Primeiro-ministro, Mário Soares, via no obreiro da revolução comunista chinesa o "construtor de uma nova sociedade no coração da Ásia, intérprete intransigente das lutas anti-imperialistas", que por essa razão merecia o "respeito internacional".
Também o ministro dos Negócios Estrangeiros, Medeiros Ferreira, alinhava no panegirico geral ao considerar que o estratega chinês tinha sido um "estadista que deixará o seu nome e a sua obra ligados ao progresso da humanidade". Aparentemente, estas seriam posições oficiais inusitadas para os mais altos representantes de um país que não mantinha relações diplomáticas com a RPC. Mas o contexto histórico justificava-as plenamente.
Na realidade, desde janeiro do ano anterior que Portugal tinha cessado as relações diplomáticas com a República da China (Taiwan), ao mesmo tempo que mostrava disponibilidade, através dos canais diplomáticos, para finalmente oficializar o relacionamento com Pequim. Um imperativo a que não era alheio a delicada questão de Macau. A problemática descolonização portuguesa ameaçava estender-se ao Oriente. Portugal acabaria por estabelecer relações diplomáticas com a RPC em 1979.

O mestre da propaganda

Mao Tsé-Tung foi o responsável máximo pela morte de milhões de compatriotas, vítimas de um ditador que nunca abdicou de espalhar o apocalipse. As campanhas de mobilização das massas, que congeminava com regularidade, acabavam invariavelmente em catástrofes sociais. Nunca se saberá ao certo quantos chineses tombaram em nome de slogans fátuos como foram O Grande Salto em Frente, Campanha das Quatro Pragas, Desabrochar de Mil Flores ou Revolução Cultural. Jung Chang e Jon Halliday estimam em 70 milhões o número de chineses que pagaram com a vida os desvarios de Mao, superando "qualquer outro líder do século XX".
Exímio na eliminação política e não raras vezes física dos seus rivais, Mao cultivou sempre uma vocação sádica no relacionamento com os camaradas de Partido e até com a própria família. Com requintes de perversidade no caso de Chu En-lai, o companheiro de uma vida, que se viu privado do tratamento ao cancro que o vitimaria por ordens expressas do Presidente chinês. O braço direito de Mao Tsé-Tung morreria em Janeiro de 1976, poucos meses antes do seu idolatrado líder. Mao não compareceu ao funeral.
Como é que se explica, então, que o sanguinário Mao tenha sobrevivido incólume a quatro décadas de domínio do PCC e 27 anos aos comandos da RPC? E que alguns círculos ocidentais, incluindo políticos, estudantes e intelectuais, tenham visto nesta figura tirânica e brutal, o farol de uma ideologia supostamente humanista no Extremo Oriente?
Talvez porque o homem com "uma cabeça de granito, onde se destaca uma verruga", como o caracterizou Estaline, fosse igualmente um consumado sedutor, capaz de doutrinar correligionários e adversários sem grande esforço. Na qualidade de chefe da guerrilha comunista, interlocutores como o general americano George C. Marshall ou mesmo o arqui-rival generalíssimo Chiang Kai-chek, foram alvos do poderoso feitiço maoista. Mao Tsé-Tung era o líder carismático por excelência.
Raymond AronApós a implantação da China Popular, Mao montou uma oleada máquina propagandística ao seu regime, servindo-se, entre outros, do jornalista americano Edgar Snow e dos voluntariosos intelectuais que, no Ocidente, procuravam uma causa anti-imperialista para firmar os seus créditos revolucionários. O ópio dos intelectuais, denunciado por Raymond Aron, também passava pelo consumo em larga escala da propaganda maoista exportada para a Europa. Mao era visto como um revolucionário, guerrilheiro, estadista e até filósofo.
O ponto alto desta ofensiva de charme ocorreria já no ocaso político do líder histórico chinês, quando este conseguiu cativar a dupla Nixon/Kissinger para a sua teia, dando-lhes a ilusão de estarem a manipular a China no combate ideológico face à União Soviética. Os americanos dormiram com o inimigo e acordaram reféns da estratégia geopolítica chinesa. Em consequência, os chineses colaram-se ao lado vitorioso da guerra fria com esforço mínimo. Um resultado brilhante para quem tinha travado um feroz conflito com os Estados Unidos, na Coreia, onde Mao perdeu o filho mais velho.

Regresso ao passado

Em 1976 o livrinho vermelho de Mao Tsé-Tung estava nas mãos de 800 milhões de chineses. Em 2016 as tipografias chinesas estão ocupadas com outro livro sagrado - a Bíblia. Na realidade, a China é a maior produtora mundial de Bíblias, impressas em todas as línguas e exportadas para todos os continentes. Este facto não passaria de um fait-divers, não fosse a perseguição que o regime de Pequim move contra a Igreja católica em território chinês. As diplomacias da China e do Vaticano, as mais antigas do mundo, continuam de costas voltadas, pese embora tímidas aproximações. Se Mao ressuscitasse, este seria apenas um dos muitos paradoxos que iria encontrar. No plano político-ideológico o "gigante da história" - como lhe chamaram vários líderes ocidentais na hora da despedida - teria mais facilidade em reconhecer a China actual. Os planos quinquenais continuam em vigor, a economia é em grande parte estatizada, o seu legado ideológico é ciosamente cultivado nas escolas do PCC e nas Constituições do Partido e do Estado, justapostos num Partido-Estado profundamente infiltrado na sociedade chinesa. A quinta geração de líderes da RPC ainda opta por declarar, prudentemente, que no maior país comunista a primeira fase do socialismo durará 100 anos.
Mao iria reconhecer com facilidade as purgas políticas em curso e as campanhas de retificação ideológicas. O apertado controlo sobre o Exército Popular de Libertação e a condenação pública de figuras de topo do PCC. Aprovaria a censura exercida nos media e círculos intelectuais e o ataque aos símbolos do Ocidente, desde os filmes de Hollywood à designação de edifícios com nomes estrangeirados.
Teria particular regozijo em ver o Partido alertar as jovens chinesas para o perigo de manterem relações amorosas com ocidentais, considerados potenciais espiões ao serviço de interesses estrangeiros. Ou ainda, observar como os estudantes no estrangeiro, infetados pelo vírus da ocidentalização, são escrutinados pelo novo departamento de controlo ideológico do PCC no seu regresso à mãe-pátria.
Veria, com orgulho, que o seu plano revolucionário de invadir as cidades a partir do campo tivera resultados muito para além do previsível. A maioria da população vive agora em grandes metrópoles, Pequim tem uma área superior à Bélgica e o governo planeia fixar cerca de 60% dos quase 1400 milhões de chineses em malhas urbanas até 2020. Não menos importante, Mao encararia com orgulho a tentativa (frustrada) dos empresários de Henan para erguerem uma estátua gigante (32 m) com a sua efígie dourada.
Em contrapartida, a outra face da China do século XXI faria de Mao um desajustado extraterrestre. Aquele que foi um dos países mais igualitários do mundo é hoje um dos mais desiguais, atestado pelo conhecido coeficiente Gini. Surpreendentemente, o PCC renascido pela mão de Deng Xiaoping revelou-se particularmente eficaz na criação de riqueza e de abastados empresários. Pequim é hoje uma capital recheada de multimilionários. A luta de classes foi substituída pela conquista de bens de luxo, imobiliário e escolas de elite para a crescente classe média. Mas a China socialmente assimétrica ainda alberga 70 milhões de desfavorecidos a viverem abaixo do limiar da pobreza - uma população equivalente à de França.
O visceral anti-burguês Mao ficaria espantado ao verificar que a "teoria da tripla representatividade", expressão cunhada pelo ex-Presidente Jiang Zemin, franqueou as portas do PCC aos inimigos figadais da revolução chinesa - os capitalistas. Perplexo ficaria também por constatar que a ancestral influência de Confúcio na sociedade chinesa - que combateu de forma implacável, substituindo-a pelo amor filial ao Partido - foi plenamente recuperada. Uma estátua de Confúcio, entretanto retirada, chegou a ser vizinha do mausoléu onde o embalsamado Mao repousa, na praça da Paz Celestial. Paradoxalmente, a matriz do PCC é agora confucionista-leninista.
Em 1958 Mao inaugurou o programa da produção maciça da fundição e do aço nas comunas populares. Mais de 90 milhões de chineses começaram a fundir tachos e panelas, daí resultando um enorme desperdício, mais tarde reconhecido pelo próprio líder chinês. Actualmente, a China é a maior produtora mundial de aço, sendo acusada de dumping pela União Europeia.

Política de terra queimada

"A procura da verdade nos factos" é um dos eixos principais do "pensamento de Mao Tsé-Tung". A verdade factual é que Mao não deixou herdeiro político nomeado, pelo que logo após a sua morte o governo apressou-se a pedir ao povo chinês que transformasse a sua dor "num reforço da luta contra o desvio à direita do ex-vice Primeiro-ministro Deng Xiaoping". Num último acto de maquiavelismo político, Mao parece ter contribuído deliberadamente para deixar como herança política o caos que tanto apreciava, entregando os destinos da China ao "bando dos quatro", onde se destacava a sua prepotente mulher. "Atuem de acordo com os princípios definidos" terá sido a sua derradeira mensagem.
Ao contrário da dinastia comunista norte-coreana ou mesmo da ditadura controlada por Chiang Kai-chek em Taiwan, Mao não se preocupou em passar o testemunho a um descendente ou outro familiar. Nunca se inquietou com o seu legado, tendo hostilizado todos os potenciais sucessores, incluindo o ostracizado Deng Xiaoping, que só conseguiria alcançar o poder em 1978. O arquitecto da abertura da China ao mundo optaria por não renegar o passado maoista, na linha de uma tradição condescendente que poupou a vida ao último Imperador ou reconheceu o papel de Sun Yat-Sen na fundação da China republicana.
Mas desde 1981 que a memória política de Mao Tsé-Tung não está imaculada. No verão desse ano o Comité Central do PCC reconheceu que Mao cometeu "erros graves", embora os relativizasse face ao conjunto da sua obra revolucionária. Com o pragmatismo que o caracterizava, Deng resolveu a questão para a posteridade: Mao esteve 70% certo e 30% errado. Em 2013 o jornal chinês Global Times, habitual correia de transmissão do PCC, dizia não haver "provas históricas ou atuais suficientemente convincentes para denegrir Mao".

O novo timoneiro

Quatro décadas após a morte de Mao Tsé-Tung, a China é comandada por outro educador das massas. Quando assumiu a liderança do Partido-Estado, Xi Jinping era encarado como o promitente reformador da política que a intelligentsia ocidental dizia faltar à China. Agora, o "tio Xi" - na versão popular a fazer lembrar o culto de personalidade maoista - é visto como um líder autoritário, que consolidou rapidamente o seu poder, graças a purgas que não pouparam os mais altos escalões do Partido e das forças armadas. Um líder forte que não hesita em acusar os politicamente desalinhados de "subversão do Estado". Um libelo que pode implicar a condenação a prisão perpétua.
Determinado a fazer história, Xi lançou uma incessante campanha anti-corrupção, reforçou o controlo do Partido sobre o EPL e não hesitou em projectar o crescente poder político, económico e até militar do gigante asiático além-fronteiras. Deitou por terra o modelo de liderança colegial adotado desde Deng Xiapoping. O seu "sonho chinês" tem como objectivo transformar a China numa nação forte, capaz de ultrapassar os EUA.
Um verdadeiro "Papa do povo" ou um administrador executivo, que gere a China como uma megacorporação empresarial, de acordo com alguns observadores. Mas é na terapia ideológica imposta às elites e população que Xi mais se assemelha a Mao. A ideologia com características chinesas, marcada pelo combate à influência ocidental, regressou em força à primeira linha da agenda política. Numa época de ligações horizontais em rede, Xi quer repor a fidelização vertical tendo o Partido-Estado como eixo motriz da sociedade chinesa.
Em 1975, Xi Zhongxun, um alto quadro do PCC apanhado na avalanche da revolução cultural, foi finalmente libertado. Pouco depois o seu filho, Xi Jinping, então com 22 anos, foi autorizado a regressar do exilio no campo para retomar os estudos. Trinta e sete anos mais tarde, esse jovem oriundo de uma família que não escapara à insanidade maoista, revelar-se-ia o líder mais forte e obstinado desde Deng Xiaoping.
A China que Mao deixou como herança era um "tigre de papel"; hoje o poderoso dragão chinês abraça o globo. A China é uma potência política e económica, preparando-se para ascender à condição de potência tecnológica. Transitou de um Estado utópico para um Estado estratégico.
Xi Jinping terá que ser muito mais do que uma mera reprodução de Mao para conquistar o seu lugar de honra na história da China moderna.

Investigador no Instituto do Oriente (ISCSP/Universidade de Lisboa)

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