A greve não derrotou a lei dos portos. Mas mostrou uma outra
forma de organização, recuperada do passado.
Em 1889, Engels, depois da greve vitoriosa dos estivadores de
Londres, comenta com dois dos fundadores históricos da social-democracia,
Kautsky e Bernstein: “É o maior evento que aconteceu em Inglaterra desde as
Leis da Reforma.” Porque se os mais desorganizados e “desmoralizados
trabalhadores do mundo” se organizaram “é porque não devemos desesperar com nenhum
sector da classe operária”.
O Sindicato dos Estivadores de Lisboa protagonizou o mais
importante conflito laboral depois da crise de 2008, com um efeito de
arrastamento para outros sectores sindicais. Apesar disso os media acompanham
de forma sofrível os acontecimentos. Por exemplo, há duas décadas que os
estivadores não controlam a empresa de trabalho portuário, empresa privada que
faz a gestão da força de trabalho no Porto; os estivadores não sabem o que está
dentro de um contentor que carregam – sabem-no os operadores privados. Se
durante a greve chegaram à Madeira automóveis em vez de medicamentos – e com o
dinheiro dos nossos impostos foram levados medicamentos por avião –, é aos
privados que o determinaram que deve ser perguntado porquê. E os salários? Um
estivador que tenha trabalhado 16 horas por dia todos os dias (como há e é
usual!) chega ao final do mês e ganha 2000 euros líquidos. Ou seja, trabalhou
dois meses num. Há estivadores eventuais no porto a ganhar 188 euros por mês,
300, 700 euros.
A greve iniciou-se no dia 20 de Abril de 2016 contra a lei
dos portos, que abre as portas à precarização do trabalho, rebaixando, pela
ameaça do não trabalho (desemprego) o valor salarial para em média 1/3.
Terminou com um acordo, a 27 de Maio de 2016. Desse acordo resulta a celebração
de um novo contrato colectivo de trabalho (CCT) que deveria ser concluído no
prazo de 15 dias. Esse CCT incluirá obrigatoriamente cláusulas que implicam a
desactivação da Porlis, empresa de trabalho portuário que recorre a trabalho
precário e mal pago, sem os direitos laborais padrão, criada para concorrer com
a AETPL, que emprega estivadores profissionais com direitos. Quase 70
trabalhadores precários serão gradualmente integrados como trabalhadores com
contratos sem termo no prazo de dois anos, incluindo os actuais trabalhadores
da Porlis. A Porlis – empresa de trabalho barato – é detida por 4 dos 7 sócios
que detêm a empresa de trabalho com direitos. O modelo é para ser aplicado
noutros sectores do mercado laboral? É este o milagre da “saída da crise” - uma
sociedade que nem o trabalho com direitos assegura (que nas nossas sociedades é
o direito à vida) e se orgulha de crescer à conta de esquemas destes e salários
chineses?
Em contrapartida o Sindicato dos Estivadores aceitou a
criação de dois novos níveis salariais. O salário base, subsídio de turno
incluído, passa assim a ser de 850 euros, com progressão automática, ao fim de
quatro anos de contrato sem termo, para os 1046,72 €. A partir daí, e aqui está
um retrocesso (já conhecido noutras empresas onde os mais novos estão
“congelados”), para os dois níveis salariais seguintes a progressão na carreira
passa a fazer-se com base no “mérito”, através da avaliação de desempenho (que,
como sabem os Portugueses de um “saber só de experiência feito”, é um
instrumento não para promover o mérito, mas para congelar ou rebaixar salários
e premiar comportamentos mais dóceis).
O silêncio do Governo foi exemplar. Não criticou os salários
em atraso, não se opôs ao despedimento durante a greve (Quem é o juiz que
decreta legal um despedimento colectivo durante e por causa de uma greve?), e
ficou a ver uma empresa paralela que decreta a morte da empresa do lado, detida
pelos mesmos sócios. Ameaçou com requisição civil. Actuou quando o conflito
ameaçava estender-se a outros sectores, tornando-se um “mau exemplo” para um
sindicalismo fortemente burocratizado que está hoje a ser contestado (queda abrupta
da sindicalização, divisão de sindicatos tradicionais). E aqui merece o
paralelo com a descrição de Engels no final do século XIX. Os estivadores não
são já o “refugo do proletariado”, como eram descritos no século XIX, mas,
paradoxalmente, a sua porcelana. A razão, ao contrário do que se avança, não é
serem poucos – 320 em Lisboa – ou apelarem à unidade, ou serem “amigos” ou
“família”, mitos que ganham espaço num país em que se debate afectos em vez de
políticas, mas a forma como se organizam. É relativamente fácil de explicar. Os
estivadores reúnem-se em plenário para convocar e debater as greves e formas de
luta, o sindicato não aprova nada que não seja definido por todos em plenário.
Este não serve para plebiscitar a direcção mas para debater e votar de braço no
ar as decisões todas. Têm uma estratégia de combate que não tem qualquer
aliança partidária – travam lutas independentemente do Governo em funções. Têm
um sindicato internacional que faz greves de solidariedade – em tempos de
globalização e produção em cadeia, o seu impacto é enorme. E, fundamental, o
fundo de solidariedade. Como conseguiram os estivadores fixos impedir os quase
70 precários de trabalhar para a empresa paralela, furar a greve, se estes são
precários e dependem do trabalho para sobreviver? Usando o fundo de
solidariedade para os ajudar. E o fundo de greve para ajudar quem necessite na
greve. Não inventaram nada agora, inventaram-no os seus antepassados em Londres
e em Lisboa na viragem do século XIX para o XX – sindicalismo democrático,
fundos de greve, e sindicalismo independente dos governos.
A política de baixos salários é a bandeira da
“competitividade” portuguesa. Ora um salário de 600 euros não é sequer um
salário mínimo. Não cobre as necessidades vitais de garantir a reprodução
biológica da força de trabalho. Um salário mínimo na ordem dos 600 euros – que
o patronato pretende transformar em salário máximo para muitos sectores – é uma
ficção possibilitada pelo Estado, que recolhe impostos dos sectores médios e
depois os entrega de facto às empresas privadas, usando dezenas de fórmulas:
benefícios fiscais, isenções para a segurança social, saúde, educação,
estágios, livros subsidiados, rendas subsidiadas, RSI, descontos na factura da
electricidade, etc. Sem esta parafernália assistencialista, os empresários
privados não teriam, dia após dia, os seus trabalhadores de pé e a produzir nas
empresas – por fome e pura exaustão.
Mais, substitui o direito a viver com dignidade do trabalho
pela decisão estatal, discricionária, que coloca quem ganha estes valores a
calcorrear os corredores do Estado e da Segurança Social, e das autarquias, a
pedir “favores”, na forma de subsídios. Lendo as cartas das mulheres dos
estivadores que se organizaram num colectivo, “Há Flores no Cais”, para apoiar
os estivadores em luta, é isso que se percebe: querem viver do trabalho, de
cabeça levantada, não de subsídios. E lutam por isso.
A greve não derrotou a lei dos portos – ufanismo e
autopromoção sindical é algo que já devia ter sido enterrado no país onde
“todos vencem sempre” –, foi uma greve isolada que não contou com outras greves
nem mobilizações sociais. Mas mostrou uma outra forma de organização,
recuperada do passado –, o tal que está sempre à espreita.
Historiadora, coordenadora do Projecto Mundos do Trabalho
Portuário, IHC-FCSH - Universidade Nova de Lisboa
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