Quando o PS foi governo, no tempo
de António Guterres, o partido ficou praticamente entregue a António Galamba.
Foi o socialista que ocupou durante mais tempo o cargo de secretário nacional
para a organização. Grande amigo de António José Seguro - e também residente
nas Caldas da Rainha - António Galamba é hoje um dos críticos mais ferozes do
seu partido e do governo liderado por António Costa.
De entre os ex-dirigentes do PS,
tem sido a única voz crítica constante do governo socialista, se excetuarmos as
entrevistas que Francisco Assis deu este fim de semana. Como é que de repente
se vê na posição de estar praticamente sozinho a dizer mal do governo?
Julgo que há algum medo no
Partido Socialista em se dizer o que se pensa. Entre os ex-dirigentes há três
situações: os que foram integrados, os que estão resignados e aqueles que
julgam que devem dizer aquilo que pensam. Eu incluo-me nesse grupo, que é um
grupo muito restrito de pessoas que acha que deve dizer aquilo que pensa. Até
por experiências anteriores: no passado, pelo facto do PS estar no governo, não
dissemos aquilo que pensávamos e aconteceu o que aconteceu, nomeadamente a
necessidade de haver um resgate. Julgo que aos 47 anos e depois de 27 anos de
militância, já não me posso dar ao direito de não dizer aquilo que penso. Sendo
certo que há pessoas que não o fazem por manifesto medo de retaliações. Dou um
exemplo: houve uma comissão política nacional em que eu participava, era
membro, onde me foi retirada a palavra durante uma intervenção.
Quando é que isso aconteceu?
Foi já quando se estava na
perspetiva do PS poder vir a ser governo. Deixei bem claro nessa comissão
política que se não dissesse o que penso nos órgãos do partido diria cá fora. E
é o que tenho feito e vou continuar a fazer.
Houve uma comissão política em
que ficou sozinho a votar contra esta solução de governo...
Sim. Por variadíssimas razões há
um conjunto de pessoas que, em surdina, e em conversas particulares,
expressam-se em determinado sentido e depois quando chega ao momento da votação
votam de acordo com a maioria. Fiquei sozinho, mas fiquei bem acompanhado pela
minha consciência. Portanto, disse e fiz o que tinha anunciado que faria se a
solução fosse aquela que acabou por se concretizar.
Falou em medo dentro do PS e de
pessoas que são contra a solução do governo mas votam a favor. Mas têm medo de
quê? De perder o emprego?
Têm medo de várias coisas. De
perder aquilo que têm ou de não virem a ter aquilo que esperam em função do
exercício do poder. Esta é uma linha que se tem vindo a desenvolver nos últimos
anos no Partido Socialista, que é totalmente contraditória com o património
histórico do PS como partido fundador da democracia. Nós olhamos para outros
partidos e em qualquer congresso há várias listas aos órgãos nacionais, não há
drama nenhum e o líder às vezes nem sequer tem maioria. No PS haver uma lista
alternativa é um drama, porque é muito mais difícil fazer uma lista ordenada
por ordem alfabética do que ter uma ordem em função da expectativa de poder e
ter todo o pensamento condicionado num só sentido. Este é um drama que o
Partido Socialista tem e tem que resolver porque dificilmente um partido com
estes tiques pouco democráticos internamente estará em condições para poder ter
uma atitude muito diferente em termos da sociedade.
Há dois anos, António Costa
candidatou-se ao congresso depois das primárias e um grupo de militantes que
pertenceram à direção de António José Seguro fizeram um “acordo de paz” e foram
integrados vários ex-dirigentes nos orgãos nacionais. Desta vez nada está a
acontecer? Desapareceu o “segurismo”?
O “segurismo” sem Seguro nunca
existiu. O que houve foi um conjunto de pessoas que tiveram determinado
comportamento, houve um entendimento sobre o que é que seria uma
representatividade desse conjunto de pessoas e depois isso não foi
manifestamente cumprido nos órgãos nacionais. A partir do momento em que a
palavra dada não é palavra honrada, está quebrada a confiança. Em relação a
este congresso não sei o que se está a passar. Sei que em relação ao anterior
congresso as coisas não correram conforme tinha sido combinado. E foi
lamentável porque se alguém quer ter a pretensão de acabar com as divisões no
Partido Socialista tem que tomar os passos certos. Não é ter uma atitude em que
não cumpre o que tinha sido assumido nem andar a escolher, tipo pesca à linha,
algumas personalidades para fazer parte quer dos órgãos do partido quer do
governo. Alguém que tem este tipo de comportamento é alguém que promove uma
lógica sectária de funcionamento e que faz com que depois também, aos vários
níveis, aqueles que estão à sua volta tenham comportamentos similares. Num
quadro destes, quem tem a ousadia de ter um pensamento diferente sofre as
consequências.
Acusa o atual primeiro-ministro
de estar a transformar o PS num partido cada vez mais sectário...
O partido não é sectário, os
dirigentes que estão à frente do partido é que têm comportamentos sectários.
Quando se invoca que no passado não se defendia o património que existia,
acaba-se agora por estar a fazer o mesmo. O que aliás em relação ao dr. António
Costa não é nada de novo, porque são variadíssimas as situações em que ele diz
uma coisa e o seu contrário. Esta é mais uma.
Está a acusar Costa de ter
acusado Seguro de não defender o património dos governos Sócrates e agora fazer
precisamente o mesmo em relação ao segurismo?
Em relação à anterior direção do
Partido Socialista houve situações verdadeiramente lamentáveis. Quando temos
alguém que foi secretário nacional para a organização durante aqueles anos, que
deu um contributo importante para as vitórias que o PS obteve, e é
marginalizado e excluído das listas como foi o caso de Miguel Laranjeiro, é só
um pequeno exemplo. Mas houve outras situações. Alguém que sendo líder do
partido, tem a responsabilidade de criar condições de união e em vez de sarar a
ferida, deita sal na ferida, é alguém que não está interessado em que o partido
recupere da contenda que teve e que deixou, naturalmente, algumas sequelas.
As feridas estão ainda vivas? O
silêncio de tantos dá a ideia de que o partido está unido em torno desta
solução.
A prova que isso não é verdade é
factual. Há dados que foram divulgados pela direção nacional do Partido
Socialista que mostram que entre o último congresso nacional, a última eleição
direta do secretário-geral do partido e esta última eleição houve 8700 militantes
do Partido Socialista que deixaram de estar em condições de poder votar porque
não têm as quotas em dia. Julgo que não haverá nenhuma razão económica para não
terem as quotas em dia. Isso faz com que, por cada dia em que o dr. António
Costa é líder do PS, há 14 militantes que deixaram de estar em condições de ter
uma participação integral no PS. Isto é sintomático de que há aqui alguma coisa
que não está a funcionar.
Mas o congresso do PS não vai ser
tão unanimista, Francisco Assis já anunciou que vai falar. O que pensa de
Francisco Assis?
Francisco Assis é um quadro do PS
que tem dado vários contributos em momentos importantes. Foi líder parlamentar,
já foi candidato a secretário-geral do PS, é um eurodeputado que tem trabalhado
bem. É uma personalidade com a qual o Partido Socialista devia contar sempre.
Infelizmente, isso não me parece ser o atual quadro tanto mais que bastou a
Francisco Assis, neste ou noutro momento, expressar um conjunto de opiniões
diferentes daquelas que são as opiniões maioritárias para nós assistirmos a um
espetáculo inqualificável de arrogância, intolerância de pessoas que nós
sabemos que são os protagonistas e os porta-vozes de toda a estratégia da
direção nacional em termos de redes sociais.
Francisco Assis não esconde que
no futuro poderá voltar a ser candidato a secretário-geral do PS. Pensa
apoiá-lo?
Quando a questão se colocar logo
se vê. Julgo que neste quadro político que temos é importante que se diga o que
pensamos. Mais do que uma afronta ao atual poder, é uma salvaguarda para o
Partido Socialista para o futuro. E quem não perceber isso, não percebe o que é
um partido democrático que tem naturalmente pessoas que dizem coisas diferentes
daquelas que constituem a maioria. Julgo que essa cláusula de salvaguarda, esse
escape das pessoas que pensam de forma diferente, é fundamental para o futuro
do Partido Socialista.
Aliás, o PS tinha o “direito de tendência”,
mas é pouco usado...
O melhor contributo que se pode
dar não é ter uma coisa organizada, que ande com movimentações... Prefiro jogar
claro e é o que tenho feito. Digo aquilo que penso, digo-o publicamente,
disse-o durante uma série de tempo nos órgãos próprios do partido, perante uma
grande agressividade, por vezes, da atual maioria. Julgo que esta é a melhor
forma e não entrar por caminhos que, aliás, foram trilhados pelo atual
secretário-geral que, direta ou indiretamente, ao longo dos últimos anos,
promoveu muitas movimentações mais ou menos secretas de forma a debilitar a
afirmação do Partido Socialista. E apesar disso tudo, o PS teve várias vitórias
eleitorais.
Portanto, está a dizer que
António Costa andou a “minar” a liderança de António José Seguro?
É factual. Basta ver que alguns
dos protagonistas atuais do Partido Socialista tiveram várias intervenções a
vários níveis de grande desgaste em relação ao caminho que estava a ser feito
depois do PS ter chamado a troika para resolver os problemas do país. Apesar de
todo esse desgaste provocado, tivemos várias vitórias eleitorais, quer nas
autárquicas, quer nas europeias. Isso é factual. E depois disso só temos tido
derrotas. Portugal deve ser o único país do mundo onde um derrotado é
transformado em vencedor perante a tranquilidade de toda a gente.
Isto acontece em muitos países.
Nem sempre é o partido mais votado que consegue formar governo...
Sim, mas foi uma derrota. O que é
expectável agora é que o Partido Socialista tenha uma nova maioria absoluta nos
Açores e que nas próximas eleições autárquicas consiga pelo menos manter as 150
câmaras que atualmente tem.
Isso será possível?
É o básico. Era só o que faltava
delapidarmos mais património do Partido Socialista!
Seguro errou ao ter avançado para
as primárias em vez de resistir, tendo em conta que estava ainda a meio do
mandato?
Não foi um erro. Mesmo tendo
António José Seguro legitimidade democrática e tendo mandato, a onda era tão
grande - eu diria que era uma espécie de onda do canhão da Nazaré - que era
impossível superar. Quer no partido, quer fora do partido, na sociedade, junto
de alguns órgãos de comunicação social, a coisa estava mais ou menos articulada
para que o resultado fosse aquele. O que eu não aceito é aquilo que tenho
ouvido em relação ao Brasil. Em Portugal o afastamento de um titular de um
cargo político com mandato, com legitimidade democrática, não é um golpe. No
Brasil já é. Parece que os golpes em democracia têm geometria variável. Não
têm. Um golpe é um golpe.
Acha então que o que António
Costa fez a Seguro foi a mesma coisa que o senado brasileiro fez a Dilma
Rousseff?
É similar. Num quadro
democrático, estamos a retirar alguém que tem legitimidade com mecanismos
atípicos da democracia.
António José Seguro pode voltar
um dia a concorrer à liderança do PS?
Só o próprio pode dizer isso.
Mas gostava que isso acontecesse?
É uma questão que passa por ele.
E é completamente extemporâneo estar a falar disso num ciclo político em curso.
E esse ciclo tem que ir até ao final. Ou não. Se não for até ao final... E de
acordo com o “programa de ajustamento do ciclo político-eleitoral” que foi
concretizado pelo prof. Marcelo Rebelo de Sousa, se nas autárquicas a situação
de pântano se verificar em Portugal, naturalmente que, depois de uma terceira
derrota, julgo que o secretário-geral do PS tem que tirar todas as ilações da
situação. Aí acho que não haverá grande volta a dar.
Se o PS perder as autárquicas, António
Costa devia demitir-se?
Se o PS perder as autárquicas o
secretário-geral deve demitir-se e assumir as responsabilidades que não assumiu
nas eleições legislativas. E com a forma como as coisas estão a ser conduzidas,
criando uma situação de total aceitação de que o PCP e Bloco de Esquerda tenham
uma cara na Assembleia da República e apoiem o governo e depois ao nível local
tenham uma cara completamente diferente - onde não só atacam o governo como
apresentam sucessivas moções de reivindicação de mais e mais coisas sem
qualquer pingo de solidariedade com o que apoiam no governo... Esta conjugação
é de grande risco para o Partido Socialista ao nível de autárquicas. E o
secretário-geral parece que já está a desistir de algumas câmaras, como é o
caso da Câmara do Porto. Acho inaceitável que um partido como o PS, que é o
maior partido autárquico, dê a ideia de que num determinado território desiste
de ir à luta. É inqualificável e é inaceitável. Mas também diz bem da
perspetiva da atual direção de que para manter o poder no plano nacional vale
tudo.
Acha que Seguro teria ganho as
legislativas?
Tinha ganho. Não tenho dúvida
nenhuma sobre isso. A trajetória que estava a ser desenvolvida fazia um
conjunto de cortes com situações que no caso do dr. António Costa não
aconteceu. O sinal político que foi dado nas eleições foi “precisamos que mudem
as políticas, mas não temos a confiança suficiente para que mude o protagonista”.
Apesar de tudo o protagonista conseguiu criar condições para continuar.
Já escreveu que o governo está a
falhar nas contas...
É manifesto. Olhamos para os
dados da economia e há muita coisa que não bate certo. Foram divulgados os
dados do primeiro semestre do anúncio de contratos de obras públicas onde se
verifica que há um aumento de 27% e depois há uma diminuição de 28% das obras
públicas que são contratadas. Há um conjunto de indicadores que são muito
preocupantes. Apesar do discurso político, a economia não está a mexer o que
devia. É verdade que o governo PSD/CDS deixou em muitas áreas as cartas
completamente marcadas. Alguns instrumentos de intervenção direta estão muito
condicionados, o IEFP, a agricultura, os fundos comunitários. Apesar do esforço
ainda não se conseguiu deslindar o novelo de maneira a colocar dinheiro na
economia.
A propósito da polémica das
escolas privadas, disse que este governo “não era constituído por gente séria e
credível”. É uma crítica duríssima. Mas para si também não faz sentido que o
Estado pague a privados quando tem escolas públicas ao lado, certo?
A questão está em saber se o
Estado tem escolas públicas. Temos que clarificar de uma vez por todas que
relação é que o Estado quer ter com a sociedade civil. Não posso dizer a alguém
“ajuda-me, que eu não consigo chegar” e a certa altura dizer “agora já não
preciso vai-te embora”. De um momento para o outro. O Estado já fez isso com os
ATL (ocupação de tempos livres), está a fazer isso com os colégios e há um
pré-anúncio de que poderá haver qualquer coisa na saúde. Temo que se entre numa
lógica de questionar tudo sem ter em conta que o Estado não tem condições para
responder a todas as situações. Estou convencido que em muitas das situações de
cortes nos contratos de associação o público não tem condições para acolher os
alunos, apesar do estudo que foi feito em cima do joelho. Quem escolheu este
momento para fazer esta opção política não teve em conta o fundamental: as
crianças que estão a estudar e têm exames em breve. Desestabilizou-se
completamente. Se a lógica é esta de começar a desestabilizar tudo, sem que o
Estado se comporte como pessoa de bem, é mau. O que o Estado diz é “estou-me a
borrifar para os amigos que tens na tua turma”, “estou-me a borrifar para o ambiente
em que te sentes bem”, “estou-me a borrifar” para uma série de coisas. Isto não
é de gente séria. Não se faz assim. O que eu acho é que se o Estado quer poupar
então vamos ver tudo! Mas tudo mesmo, incluindo quantos sindicalistas que são
suportados pelo Estado. E quantos escritórios de advogados continuam a
gravitar, apesar do discurso de contenção, à volta deste governo? Se vamos
cortar, corte-se bem. Estou de acordo com o princípio, não tenho a visão da
direita da “liberdade de escolha”. Deve haver um equilíbrio. Mas uma coisa é
estar sentado num gabinete da 5 de Outubro e outra a realidade do país! Há
sítios onde os colégios já existiam e foi criada oferta pública!
Acha que é o governo PS a ceder
ao Bloco, ao PCP e à Fenprof como a direita costuma dizer?
Não tenho dúvida nenhuma. Com a
opção que o PS fez de ir para o governo estando totalmente dependente do PCP e
Bloco de Esquerda colocou-se numa situação onde está em areias movediças.
Pode-se mexer um bocadinho, mas não se pode mexer muito. Aliás, acho que a
polémica dos colégios é para distrair de outro tipo de coisas, como a situação
económica. O governo, em boa parte, passa os dias fechado em gabinetes, a responder
a requerimentos do Bloco de Esquerda e do PS e esquece-se que tem um país para
conhecer. Uma coisa é estar sentado num gabinete algures em Lisboa, outra coisa
é conhecer o país.
Teve durante muitos anos responsabilidades
dirigentes do PS...
Estive 14 anos como deputado na
Assembleia, fui o secretário nacional para a organização que mais tempo esteve
no cargo, com António Guterres, até à saída dele. Depois fui governador civil
de Lisboa. Gostei mais de ser governador civil do que deputado, porque consegui
intervir em algumas coisas que mudaram decisivamente a vida das pessoas. Por
exemplo, um programa que era o “Desperta no Desporto”. Há um miúdo ucraniano,
agora já português, que joga râguebi em França num clube e é jogador na seleção
nacional. Provavelmente isso não teria acontecido se não fosse o nosso
programa. Essas coisas é que dão gozo na política, não é a disputa pelos
cargos, as facadas nas costas, as movimentações sem qualquer sentido de que a
política deve estar centrada nas pessoas.
Critica António Costa por ser
sectário, mas o governo tem secretários de Estado, como Jorge Seguro Sanches e
José Luís Carneiro que foram apoiantes e integraram a direção de António José
Seguro. E o próprio ex-ministro João Soares. A geringonça incluiu o passado...
Era só o que faltava que a
vassourada fosse total! Aí o escândalo seria maior. O que digo é que em matéria
de integração o que foi feito foi o seguinte: colocá-los em determinada posição
de maneira a que aqueles que possam contestar sejam em menor número possível.
Não vai ao congresso?
Provavelmente não irei. Embora
tenha formação católica não sou praticante nem sou muito crente. Mas acho que
se deve respeitar as missas, mesmo quando se tem uma opinião diferente. Como o
congresso nacional provavelmente vai ser uma missa, e como o anterior congresso
correu muito mal, não fará muito sentido ir a um congresso onde é suposto só
dizer-se “ámen”. E para dizer “ámen” não vale a pena ir lá.
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