Alexandra Lucas Coelho - jornal Público
Um
retrato de Portugal em estilhaços, no Museu Nacional de Etnologia
1.
No Verão de 1881, Hermenegildo Capelo era já meia lenda. Lisboa recebera-o em
triunfo no ano anterior, quando ele regressara de África com Roberto Ivens.
Tinham feito metade do continente na horizontal, faltava a linha toda, de
Angola à Contra Costa, o que veio a
acontecer poucos anos depois. Mas pelo meio, nesse Verão, coube a Capelo
conduzir uma outra expedição a paragens lendárias, misteriosas, quiçá mortais:
a Serra da Estrela.
2.
O projecto foi apresentado aos membros da Sociedade de Geografia pelo fundador,
Luciano Cordeiro, com os argumentos científicos de Sousa Martins, que ainda não
era um santo laico mas já tinha grande reputação enquanto médico. Sonhava curar
a tuberculose, vulgarmente conhecida como tísica, então fatal. Nos Alpes
haviam-se multiplicado sanatórios, comprovando a eficácia das alturas, e Sousa
Martins queria fazer da Serra da Estrela uma Davos. Seria a montanha mágica
portuguesa, quando Thomas Mann ainda nem imaginara o livro (até porque tinha só
seis anos). Mas a ideia da expedição estava longe de se restringir à Medicina.
O céu era, de facto, o limite.
3.
Reuniu-se a maior concentração alpinista-cientista de que havia memória em
Portugal: cem luminárias de Agronomia, Arqueologia, Química, Botânica,
Hidrologia, Medicina, Meteorologia, Zoologia, Etnografia, Geologia e, novidade,
Fotografia. Seriam dias para o avanço da ciência, do país, do mundo, isso teria
de ser registado por todos os meios disponíveis. Portanto, um repórter, Eduardo
Coelho, fundador do Diário de Notícias, integrava a expedição. E, além do
sanatório, havia o projecto de criar um
observatório meteorológico, dos primeiros na Europa.
4.
Vindos de Lisboa, Porto ou Guimarães com laboratórios portáteis, máquinas e
aparelhos montados para a ocasião, os cem sábios juntaram-se aos guias e
auxiliares locais no acampamento geral junto a Manteigas: 3 de Agosto de 1881.
Cada um tinha direito a maca, mantas, bacia de barro, marmita para ração,
cantil para vinho. Apesar de ser Verão, tanto era o medo do frio que iam
atafulhados de camisolas, “toda a lã de um rebanho em cima de nós!”, descreveu
Coelho. “Pôr sobre isto revólver para lobos, toucinho para as víboras.” Entre
feras e desconhecido, era uma África nas alturas. Pelo sim, pelo não, Sousa
Martins usava um barrete verde de campino.
5.
Cada área científica tinha um coordenador. O da Botânica era Jules Daveau,
tio-avô de Suzanne Daveau, futura geógrafa. Décadas depois, Suzanne poderia ser
encontrada ao volante de uma Renault 4L, levando o marido, Orlando Ribeiro, que
não guiava. O grande geógrafo português do século XX era criança quando Jules
Daveau morreu, e de certa forma seguiu-o, a ele e a todos os integrantes da
Expedição Científica à Serra da Estrela nessas penhas, nesses cântaros.
Cadernos e Leica à mão, a Serra da Estrela foi uma das paisagens de Orlando
Ribeiro, e as suas fotografias e notas cruzam-se agora com o espólio de 1881 e
dezenas de imagens, objectos e sons do último século e meio português, numa
exposição magnífica que pode ser vista até Outubro no Museu Nacional de
Etnologia, em Lisboa. Um retrato de Portugal em estilhaços, desde a serra mais
alta a matas na berma da estrada, pondo em comunidade gente que já não está lá
e pode nunca ter coincidido, o mesmo lugar através de várias gerações, um
abrigo de pastor ao som da periferia. O curador Nuno Faria tomou a fotografia
como condutor, tentando perceber “de que forma, para várias linguagens, ela se
torna uma linguagem comum”. Por isso chamou à exposição Os Inquéritos [à
fotografia e ao Território] — Paisagem e Povoamento. A expedição de 1881 é o
marco inicial por ter sido a primeira vez em Portugal que a fotografia se
juntou às outras disciplinas.
6.
Orlando Ribeiro passava férias em Viseu com os avós, então começou a ir para a Serra da Estrela cedo, e
a fotografá-la ainda antes de se tornar geógrafo. Uma das suas imagens do vale
glaciar do Zêzere é de 1937, tinha ele 18 anos, diz Duarte Belo, por sua vez o
fotógrafo que melhor conhece a obra de Orlando Ribeiro. Se Ribeiro seguiu os
passos de Capelo, Martins, Daveau & etc, Belo seguiu os passos de Ribeiro.
E o percurso no Museu de Etnologia começa justamente com uma instalação de 60
fotografias de Duarte Belo, continuada adiante por um conjunto de 42 na Serra
da Estrela, antologia de muitos anos de visitas, caminhadas a pé, noites
acampado, isolado. Se ninguém fotografou o território português com o detalhe
de Belo (entre património natural e edificado, dezenas de volumes publicados,
centenas de milhares de imagens), a serra conta-se entre as paisagens a que mais
voltou.
7.
Outro artista que usa a fotografia, mas não apenas, e também tem uma forte
relação com a Serra da Estrela, é Pedro Tropa. Tão forte que, após muitas
visitas, está a construir um abrigo/refúgio de uso comunitário. Seguindo o
percurso no Museu de Etnologia, a sua serra, em imagens, objectos, texto e som,
segue-se à de Capelo, Ribeiro e Belo.
8.
Tudo isto, incluindo o espólio relativo a 1881, já fazia parte da primeira
montagem desta exposição, que esteve no Centro Internacional das Artes, em Guimarães,
entre Outubro de 2015 e Fevereiro de 2016. Mas, logo na origem, quando Nuno
Faria começou a pensar na ideia de inquéritos ao território, estabelecera uma
ligação ao Museu de Etnologia, por causa das recolhas feitas pela equipa
fundadora, em fotografia e filme. Então, o actual director do museu, Paulo
Costa, propôs que a exposição depois viajasse para Lisboa, juntando-lhe
objectos da colecção do museu. “É muito raro uma exposição ter duas vidas”, diz
Nuno Faria. Nesta segunda vida, a arte contemporânea tem uma presença mais
condensada (além dos autores já citados, há fotografias de Alberto Carneiro nos
anos 1970, corpo entre árvores e pedras; filmes de Daniel Blaufuks, André
Príncipe, Mariana Caló e Francisco Queimadela; visões da periferia de Diogo
Lopes e Nuno Cera, e de Paulo Catrica; os livros-mapa de Pedro Campos Costa,
Nuno Louro e Eduardo Costa Pinto que traçam rotas em Portugal e em Lisboa; uma
instalação sonora de Carlos Alberto Augusto, fotografias de Álvaro Teixeira,
Jorge Graça, Eduardo Brito).
9.
Ao mesmo tempo, com a inclusão das peças que vieram das reservas do Museu de
Etnologia, o percurso entre imagens e sons passa a ter memórias físicas
assombrosas, como a instalação referente ao pastoreio na Serra da Estrela, com
capa de pastor em surrubeco de lã, as protecções em pele de ovelha que se
usavam nas pernas, campainha, chocalho, tesoura, cinchos para fabrico de
queijo, ferrada e balde de leite, ferros e coleira anti-lobos para os cães; o
molde e maço para construção de casa em taipa (terra amassada com água, ideal
para climas quentes e secos) no Alentejo e Algarve; ou a formidável choça,
abrigo móvel com armação em madeira e revestimento em palha, comprado em 1977
ao pastor Gervásio Nogueira. É de Tolosa, Nisa, mas podemos pensar também em
África ou na Amazônia, se nos sentarmos à entrada, ao nível dos troncos
preparados para o fogo.
10.
Não menos emocionante será acompanhar os périplos de dois notáveis colectivos
portugueses na segunda metade do século XX. O primeiro é o dos etnógrafos
liderados por Jorge Dias (ele próprio, mais Margot Dias, Ernesto Veiga de
Oliveira, Fernando Galhano e Benjamim Pereira, uma recolha feita entre 1947 e a
década de 1980 que serviu de base à criação do próprio Museu de Etnologia). O
segundo é o dos arquitectos reunidos por Keil do Amaral para o Inquérito à
Arquitectura Popular em Portugal, na década de 1950, dividido entre Minho,
Trás-os-Montes, Beiras, Estremadura, Alentejo e Algarve (Fernando Távora, Nuno
Teotónio Pereira e Frederico George são alguns dos 18 que participaram, três
por cada região). Nuno Faria encontra uma “alegria do corpo, da espera, da
contemplação”, nesta recolha. As câmaras que se usavam contribuíam para isso,
Rolleiflex, Hasselblad, por ficarem ao nível da barriga, um “ponto de vista infantil,
com muito chão”, diz o curador (remetendo para o texto Tanto Chão, de Jorge
Moreno, no catálogo).
11.
Diante dessas imagens de Portugal nos anos 1950, mandei uma mensagem a um amigo
arquitecto. “O país pimba já varreu tudo isso, ficam as fotografias”, respondeu
ele. “Foi a forma de tentar erradicar uma ideia de pobreza”. E o país que
resultou dessa tentativa também está no Museu de Etnologia, nas cidades, nas
periferias, nos baldios. Ou nas matas à beira da estrada onde mulheres se
prostituem entre plásticos e panos velhos. Fotografias de Valter Vinagre que
“não mostram gente, mas é de gente que falam”, como ele diz. São o beco final
da exposição, fantasmas de agora.
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