Texto
e Fotografias Luís Quinta
Nas
águas cristalinas do rio Olo, milhares de animais de aspecto bizarro fixam-se
com tenacidade ao fundo. Vistos à lupa, parecem criaturas de ficção, mas o seu
valor vai muito além de simples alimento para a cadeia de predadores. Eles
revelam a saúde do rio.
Após
vários meses ou anos no leito do rio, as larvas de libélulas trepam as margens
durante a madrugada e libertam-se do exoesqueleto transformando-se em eficazes
seres alados.
No
início do século passado, qualquer mineiro de carvão ou explorador de grutas
não entrava na escuridão profunda sem se fazer acompanhar de um canário. Com
baixa tolerância ao monóxido de carbono e ao gás metano, batimento cardíaco
elevado e reduzida capacidade pulmonar, os canários tornaram-se indicadores de
excelência de possíveis condições impróprias para o ser humano. Antes de o
mineiro sentir dificuldades, já esta sentinela biológica tinha dado o alarme.
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Depois
de terminada a metamorfose, muitos destes organismos revelam-se belos insectos
alados, como libelinhas, libélulas, efémeras ou borboletas. Consoante as
espécies, a sua fase de vida subaquática pode durar meses ou anos.
Todos
os cursos de água nacionais podem albergar várias espécies de insectos, mas só
os rios ou cursos de água com grande pureza servem de residência a algumas
famílias menos tolerantes às alterações químicas, físicas ou biológicas. No
fundo, como o canário das minas, estes são os sentinelas dos rios.
Simone
Varandas, engenheira florestal do Centro de Investigação da Universidade de
Trás-os-Montes e Alto Douro (CITAD/UTAD), revela uma classificação criteriosa:
“De acordo com o índice biótico da Península Ibérica (IBMWP), a cada família é
atribuída uma pontuação de acordo com o grau de tolerância a alterações das
condições ambientais. O rio Olo é habitado por vários macroinvertebrados com a
máxima valorização. Estes organismos permitem conhecer a saúde de um rio e o
impacte das actividades humanas nesse ecossistema.”
As
águas cristalinas e oxigenadas do rio Olo são o território ideal para cerca de
duzentas espécies de macroinvertebrados que ali passam parte da sua vida. O rio
tem sido utilizado como modelo biológico para testar indicadores de qualidade
da água.
Em
meados do século XX, o uso de bioindicadores começou a ganhar relevância e o
repertório de seres vivos aptos para essa tarefa tem vindo a aumentar e a abranger
cada vez mais ecossistemas aquáticos e terrestres. No ciclo de vida dos
macroinvertebrados do rio Olo, ficam impressas marcas de alterações químicas,
mudanças de temperatura, de substrato, de luminosidade, de velocidade da
corrente ou de competição. Se forem avaliadas populações e distribuições
geográficas, o conhecimento de um rio ou ribeiro pode ainda ser mais profundo.
Com
o seu grupo de investigação na UTAD, Simone Varandas tem testado bioindicadores
em sistemas fluviais, procurando organismos cuja sensibilidade a modificações
ambientais possa ser medida. Estes microinvertebrados apresentam várias
vantagens, dada a sua adaptação a diversas escalas espaciais e níveis de
perturbação.
Melro-de-água,
espécie comum nas margens do rio Olo.
Ao
longe, no meio de uma cascata, identifico um melro-de-água com alimento no
bico. Como um bom pisteiro, sigo os sinais de actividade da ave, pois a sua
presença é sinónimo de larvas aquáticas indicadoras de ecossistemas aquáticos
de boa qualidade. A diferença nestes cursos de água é que os organismos
intolerantes à degradação ambiental são substituídos pelos tolerantes. Embora
muitas aves se alimentem de insectos aquáticos, nenhuma atinge a performance
deste melro, que mergulha nas correntes fortes e caça petiscos suculentos.
Continuando
a descodificação da paisagem como um crítico de arte numa galeria, sei que o
alimento no bico do melro significa normalmente que existem crias para
alimentar no ninho. Na época de reprodução, este passeriforme pode capturar
centenas de larvas de primeira qualidade. A abundância define o sucesso da
criação, mas também das condições biológicas para as larvas no rio. Além de
aves, muitos répteis, anfíbios e alguns mamíferos, como a toupeira-de-água,
também optam por este menu.
Alguns
destes seres alienígenas são tão pequenos que só através de imagens ampliadas
no LCD da câmara fotográfica consigo ver as delicadas estruturas do seu corpo.
Na
mão, tenho a larva de uma efémera. Colorida, de movimentos graciosos e olhos
grandes, a sua fisionomia parece um desenho futurista. Quando emergir da água,
apenas terá uma missão: reproduzir-se. A sua fase aérea é tão curta que dura
apenas algumas horas, pelo que não possui sequer aparelho digestivo.
Algumas
brânquias, que parecem penas, são tão ramificadas e desenhadas que sugerem
outra função para além de respiração – o encantamento nupcial. A aparência é
cativante e o movimento ritmado e sincronizado das brânquias para captar o
oxigénio é surpreendente.
Simone
Varandas mostra uma tina de plástico branco e aponta para a quantidade de
criaturas agitadas acabadas de capturar. “A diversidade destes seres é tão
grande que certamente haverá aqui algumas espécies novas para a ciência.” Esta
é uma nova fronteira do conhecimento.
Uma
amostra dos exóticos invertebrados de um único curso de água durante a fase
larvar. É atribuída uma classificação a cada um destes seres subaquáticos em
função da sua utilidade como bioindicador. Muitos vivem pouco mais de 24 horas
após a sua metamorfose.
Enquanto
me afasto deste mundo liliputiano, regressando à superfície, tento não perder
noção do valor que estes animais têm para o nosso mundo. As criaturas bizarras e sensíveis, fáceis de
recolher, dão informações alargadas do passado, do presente e do futuro de cada
rio que colonizam. No fundo, voltamos sempre à variação do mesmo tema – a
imensidão do que falta apreender sobre o mundo natural.
No
prefácio ao livro “Micro”, que deixou incompleto, o escritor Michael Crichton
lembrou a obsessão que o perseguiu durante toda a sua obra, bem patente no
célebre “Parque Jurássico”: “A mais importante lição a retirar da experiência
directa é o facto de o mundo natural, com todos os seus elementos e
interconexões, representar um sistema complexo cujo comportamento não
conseguimos compreender nem prever. É-nos negado esse controlo. E sê-lo-á
sempre.”
Sobre as galerias da Serra dos Passos, consultar este site:
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