Só precisamos de ser um
pouco mais franceses: ter orgulho em viver da terra e na terra e valorizar
melhor o que produzimos.
A propósito da
inauguração do túnel do Marão e do simbolismo associado a esta obra, Manuel
Carvalho escreveu um interessante artigo de opinião sobre Trás-os-Montes,
fazendo um retrato regional para além do óbvio e dos foguetes e desancando
naquilo a que chama o complexo político-empresarial. Mas, para além do exagero
de eleger Fontainhas Fernandes, o reitor da Universidade de Trás-os-Montes e
Alto Douro, como a melhor notícia que aconteceu à região nos últimos anos, é
notória na sua análise a persistência numa visão desenvolvimentista assente no
custo/benefício, tão ao gosto do complexo jornalístico-académico, de que Daniel
Bessa – citado no artigo de forma elogiosa – é um bom exemplo.
Um dia ouvi este
académico defender em Vila Real que é preciso deixar morrer algumas aldeias
para salvar outras, porque não há dinheiro para suportar tudo. A sua tese até
pode ser defensável em termos teóricos, mas humanística e socialmente é
intolerável e quase fascista. Não é preciso esgotar os recursos públicos para
salvar todas as aldeias. Todas as aldeias podem ter uma segunda vida se formos
engenhosos e não olharmos só para os números. Muitas aldeias transmontanas
estão a renascer com novos usos, mais ligados ao turismo e à segunda habitação
de fim-de-semana de famílias que vivem em cidades ou vilas mais próximas, sem
que isso tenha acarretado grandes custos para o Estado. Desistir é sempre a
pior solução. Muitas aldeias só precisam de ter o básico para poderem
sobreviver: luz, água e uma estrada aceitável. É pedir muito?
No confronto dos números,
Trás-os-Montes aparece sempre como uma das regiões mais pobres do país. Mas
afinal o que é a pobreza? Será que a pobreza numa aldeia transmontana é igual à
pobreza das grandes cidades? Eu e a minha família vivemos em Vila Real, que não
é uma cidade comparável ao Porto ou a Lisboa. É mais pobre, mas vivemos muito
bem. Não temos tantos restaurantes, cinemas, museus, lojas, vida cosmopolita,
mas temos segurança, pacatez, serviços básicos, bons produtos da terra,
biodiversidade e, finalmente, estradas modernas para podermos viajar com mais
conforto e segurança dentro da região e do país.
O complexo
jornalístico-académico acha um exagero construir uma auto-estrada do Porto a
Bragança, sobretudo de Vila Real a Bragança, por haver pouco trânsito. O IP4
era suficiente, defendem, mesmo continuando a matar famílias inteiras, jovens
estudantes, crianças. O grande mérito do túnel do Marão e da auto-estrada até
Bragança não é tanto derrubar o mito da serra-barreira, mas sim acabar com a
mortandade rodoviária no IP4. Não há dinheiro que pague isso.
Sobre o seu impacto no
desenvolvimento da região, temos que esperar para ver. É verdade que as
auto-estradas produzem um efeito túnel e podem levar mais do que trazer. Mas
será que Murça, Mirandela, Chaves, Régua, Vila Real, Bragança ou Macedo de
Cavaleiros estavam melhores quando eram servidas pelas velhas estradas
nacionais, com as suas curvas intermináveis? Se a auto-estrada leva mais
depressa as pessoas do interior para o litoral, também permite que médicos,
professores, engenheiros, gestores e tantos outros profissionais qualificados
do Porto ou de outras cidades vizinhas possam ir mais depressa a
Trás-os-Montes, mesmo que regressem à noite a casa. A qualidade de vida de uma
região não se avalia apenas pelo número de pessoas que ali vivem, mas também
por quem lá trabalha e por quem a visita. Quem for um fim-de-semana a Bragança
vai ficar estupefacto com o número de espanhóis nas ruas ou nos restaurantes.
Mesmo que as estradas não sejam o santo-graal do desenvolvimento, uma região
isolada ou mal servida de transportes não tem as mesmas oportunidades que uma
região com boas ligações aéreas, marítimas, ferroviárias e rodoviárias. Até
agora, Trás-os-Montes não tinha nada de nada.
Ao suavizar essa lacuna,
o túnel do Marão e as novas estradas irão certamente ajudar a atrair
profissionais mais qualificados a Trás-os-Montes. De resto, não é por acaso que
vão ser construídos dois novos hospitais privados em Vila Real. E antes um
hospital do que uma fábrica, por mais absurdo que isto pareça. Como
transmontano-duriense, não gostava de ver a minha região povoada de fábricas,
complexos industriais e shoppings que fizessem crescer o PIB regional. A
vocação de Trás-os-Montes e Alto Douro está no campo (no vinho, no azeite, na
floresta, na pecuária, nas frutas e hortícolas) e no turismo (da comida, do
vinho e da natureza). O boom do turismo no Douro (essa sim, a melhor notícia
dos últimos anos) e a pujança do seu sector vitivinícola, mesmo com grandes
desequilíbrios entre o comércio e a produção, os exemplos de Montalegre e
Vinhais, onde as feiras de fumeiro conseguiram criar uma pequena rede de
pequenas indústrias familiares geridas por jovens licenciados, ou o caso
singular da tanoaria J.M. Gonçalves, que faz barricas para todo o mundo a
partir da aldeia de Palaçoulo, em Miranda do Douro, mostram-nos que o caminho é
mais fácil do que se pensa e que a periferia não é uma sentença de morte. Só
precisamos de ser um pouco mais franceses: ter orgulho em viver da terra e na terra
e valorizar melhor o que produzimos.
*Jornalista e produtor de
vinho
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