Santana Castilho - jornal Público
Todos
percebemos, tardiamente, que as desilusões têm o tamanho das ilusões. Mas essa
percepção não tem sido suficiente para nos poupar à realidade dos fundamentos
medíocres das mudanças impetuosas.
Na penúltima semana de Março, o Governo
falou ao povo. A 24, Tiago Rodrigues deu-nos a conhecer o resultado de um
Conselho de Ministros dedicado à Educação. São cinco as epígrafes que
sintetizam outras tantas políticas definidoras do rumo para a legislatura:
1. “Sucesso escolar”, com o anúncio de
mais um Programa Nacional (este não é “integrado”) visando envolver toda a
gente, menos, significativamente, os alunos e recuperando os mais gastos e
vulgares lugares comuns sobre a matéria.
2. “Orçamento participativo”, isto é,
demagogia primária e gongorismo cívico, que consistirá em atribuir, no dia do
estudante do próximo ano (desta feita Marcelo não poderá invocar falta de
previsibilidade), aos alunos do Secundário e do último ciclo do Básico, uma
verba adicional, que será gasta segundo decisão deles, em prol da escola,
entenda-se.
3. “Formação de adultos”, ou seja mais um
programa, este “integrado”, como manda o prontuário de serviço, que recupera e
elogia as Novas Oportunidades, de má memória (adiante fundamentarei).
4. “Educação inclusiva”, decidindo-se
nesta sede a criação de um grupo de trabalho para reorganizar leis (como se o
problema não fosse cumpri-las) e juntar aos diplomas dos graus não superiores
um suplemento que ateste o que os titulares fizeram em contexto
extra-curricular (admitindo eu que torneios de caricas não sejam elegíveis).
5. “Parcerias”. Sim, parcerias. Uma com o
Ministério da Saúde, para habilitar os alunos do 10º ano com competências em
Suporte Básico de Vida. A outra, com o Ministério da Economia, a cargo de
estudantes do Ensino Artístico, tratará da “animação turística” das ruas das
nossas cidades.
Aos que achem que estou a ser sarcástico
em excesso, peço que leiam o documento com que o ministro comunicou com o país.
Confiram a linguagem redonda, as formulações gastas, a pobreza de frases sem
sentido. Reparem nesta, que explica o Programa Integrado de Educação e Formação
de Adultos (PIEFA):
“Este programa
deverá assentar numa maior integração das respostas na perspetiva de quem se
dirige ao sistema, tornando, na ótica do formando, coerente e unificada a rede
e o portefólio dos percursos formativos, que no percurso individual devem ser
passíveis de combinação personalizada”.
Entenderam? Por aqui é que vamos?
A 29 falou António Costa. No Centro de
Congressos de Lisboa, apresentou-nos o Programa Nacional de Reformas 2016-2020,
um PowerPoint foleiro (prosa em slides é cábula de comunicador de vão de
escada) com diagnósticos e objectivos. Mas o que falta ao país não são
diagnósticos. São soluções. O que falta ao país não são objectivos. São
processos, saber e autonomia financeira para os cumprir. Mas sobre o concreto
para gastar os 12,5 mil milhões de euros de que Costa espera dispor, Costa
disse nada, sendo por isso vazia de sentido a discussão pública que propôs até
final de Abril. Em matéria de Educação retomou a conversa da treta de Tiago
Rodrigues e acrescentou-lhe mais a universalização da frequência do pré-escolar
aos três anos até 2019. Este tópico e a recuperação das Novas Oportunidades
merecem um comentário.
A educação de adultos é importante?
Obviamente que sim. Todas as iniciativas que visem a qualificação dos cidadãos
são importantes. A taxa de analfabetismo de 5,15%, apurada pelo censo de 2011,
(sendo que o analfabetismo funcional não está determinado) tem repercussões
relevantes do ponto de vista pessoal e social e muitos dos professores sem
emprego poderiam combatê-la. Neste quadro, o reconhecimento e validação de
competências adquiridas em percursos profissionais consistentes, para efeitos
de equivalência a processos de escolarização formal, afigura-se um mecanismo
aceitável. Desde que sério e aplicado com rigor. E é bom que não esqueçamos que
os Centros Novas Oportunidades do consulado de Maria de Lurdes Rodrigues
sucumbiram à pressão política para passarem certificados em prazos
insuficientes para formar. Aí residiu o logro genérico: confundir certificação
com qualificação. No apogeu do programa, o discurso oficial orgulhava-se da
cadência de 10.000 certificações mensais, mas clamava pelo objectivo das
30.000, o que, pese embora a seriedade e a dedicação de muitos, foi,
globalmente, um embuste.
Sendo certo que a qualificação dos
portugueses está longe dos níveis dos nossos parceiros mais desenvolvidos, pode
António Costa atribuir o atraso económico a esse fenómeno? Como assim, num país
que exporta médicos, engenheiros e enfermeiros (só no Reino Unido estão
12.000), e que por cá desperdiça no desemprego, nas caixas dos supermercados e
nos “call centers” dezenas de milhares de licenciados (professores,
arquitectos, juristas,etc.)?
Quanto ao pré-escolar, a Fundação
Francisco Manuel dos Santos, apoiada pelo Conselho Nacional de Educação,
promoveu um estudo que concluiu que a taxa de retenção (uma vez, pelo menos,
até aos 15 anos) dos jovens que o frequentaram é 29%, enquanto a daqueles que
não tiveram tal experiência se cifra em 46%. Poderão estes dados permitir o
estabelecimento de uma relação directa, sobretudo única, entre a frequência dos
jardins-de-infância e a diminuição do insucesso escolar? Não parece prudente
fazê-lo, quando os dados estatísticos disponíveis mostram, do mesmo passo, uma
correlação directamente proporcional entre o estatuto sócioeconómico das
famílias e a apetência para colocarem os filhos no pré-escolar. Assim sendo,
quem para lá vai e contribui para o abaixamento da taxa de retenção, transporta
outras vantagens favoráveis ao desenvolvimento, que acrescem às que retirarão
da passagem pelo pré-escolar. Não contesto a correcção das políticas que tendam
a universalizar o acesso ao pré-escolar aos três anos. Tão-só pretendo
sublinhar que não será a panaceia decisória para o insucesso, sobretudo se essa
universalização for marcada pela antecipação das aprendizagens de cariz
escolar. A imaturidade psicológica das crianças (defendo, de há muito, os 7
anos como idade de entrada no básico) para serem confrontadas com determinadas
aprendizagens, é responsável por muito insucesso. São erradas as pressões para
obter mais e melhores resultados escolares cada vez mais cedo. São erradas as
políticas que procurem reduzir a educação de infância a uma simples antecâmara
da educação escolar. É outra a função dos jardins-de-infância, onde o
desenvolvimento de capacidades vitais de crescimento deve ser promovido na
condição de crianças, que não de alunos.
A comunidade educativa vive há 40 anos
entre a euforia e o desânimo. Não só de modo cíclico, como de maneira
polarizada dentro de cada ciclo: de um lado os reformistas do momento, do outro
os seus oposicionistas. E as posições trocam-se quando muda a cor dos que
chegam ao Governo. Nas fases mais bipolares, como foi o caso da anterior
legislatura e é o caso da actual, as oscilações vão do 8 ao 80. A cada
recomeço, uns divisam horizontes de milagre, enquanto outros profetizam
cenários de desastre.
Quantos mais transplantes para as escolas,
de ideologias e de imbecilidades, teremos que sofrer, quanto mais terão que
sofrer pais, alunos e professores, para que os partidos políticos aceitem que
as reformas em educação devem respeitar ciclos inteiros de aplicação, em nome
da estabilidade e da previsibilidade, indispensáveis a avaliações sérias e
trabalho pedagógico sereno?
Todos percebemos, tardiamente, que as
desilusões têm o tamanho das ilusões. Mas essa percepção não tem sido
suficiente para nos poupar à realidade dos fundamentos medíocres das mudanças
impetuosas. Quando assim escrevo não penso só em Tiago Rodrigues, que em tão
pouco tempo já me esclareceu. Penso em Nuno Crato, também, para não recuar
mais. Ante a continuada incapacidade de ter um modelo de ensino pactuado (em
que cada força política aceite ceder no imediato para construir vantagens para
o país no futuro) é natural que sobrevenha o pessimismo de um lado e o
sebastianismo do outro. E lá voltamos à dinâmica bipolar, numa alternância
diabólica. Pôr-lhe fim é o desafio do futuro. Tudo o mais, intenções, ideias em
quinta mão, palavras gastas, folclore.
Professor do ensino superior
(s.castilho@netcabo.pt)
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