É típico das nações exóticas: um livro
apenas excita os que desejam proibi-lo. Henrique Raposo escreveu, julgo que em
registo entre as memórias e a literatura de viagem, acerca da região dos seus
antepassados. A obra chama-se "Alentejo Prometido". Pelo menos um dos
capítulos trata da elevada taxa de suicídio naquelas paragens. Não conheço o
Henrique, excepto das crónicas no "Expresso". Não conheço
"Alentejo Prometido", excepto das pré-publicações e referências na
imprensa. Não conheço o Alentejo, excepto por três ou quatro passagens breves e
umas semanas no quartel de Vendas Novas. Mas a minha ignorância na matéria,
aliás presumivelmente semelhante à do lisboeta médio sobre Trás-os-Montes, não
vem ao caso. E o caso é a exuberante exibição de fanatismo, e talvez algum
desequilíbrio patológico, que o referido livro alimentou.
A história, que peço desculpa por repetir,
começou após a presença do Henrique no programa "Irritações", da Sic
Radical, onde falou da tal propensão suicida e de uma alegada indiferença à
mesma. Num instante, a internet desatou a babar uma indignação rara até para os
generosos padrões daquilo. Criaram-se petições sortidas, umas para suprimir o
livro, outras para suprimir o Henrique. A página no Facebook do responsável
pelo "Irritações", Pedro Boucherie Mendes, desapareceu por dias. A
espelunca anfitriã do lançamento cancelou-o corajosamente. A polícia foi
convocada para um local alternativo. Incansáveis activistas dos direitos civis
ficaram civicamente mudos.
Nada disto é exactamente novo. O que se
calhar não é comum é a desproporção do ódio face ao pretexto: que espécie de
transtorno leva milhares de pessoas a perderem tempo e a cabeça, admitindo que
a tinham, à conta de umas opiniões (e umas estatísticas) transcritas em papel?
Diversos factores ajudam à festa.
Em primeiro lugar, há o ancestral afecto
popular por linchamentos, embalados pelo conforto do anonimato ou pela força da
multidão. Poucos fenómenos consolam tanto a humanidade quanto a impressão da
razão atribuída pelo número: se "toda a gente" adere a uma
"causa", seja esta a liberdade de expressão do "Charlie
Hebdo" ou o silenciamento da expressão do Henrique, é aí que o cidadão
mediano e medianamente cobardolas quer estar.
Em segundo lugar, há o estímulo à
irracionalidade providenciado pela internet. Se antigamente a indignação das
massas se traduzia no futebol ou nas dúzias de ociosos que prometiam, à porta
dos tribunais, vingar sujeitos cuja existência lhes escapava dez minutos antes,
hoje as "redes sociais" democratizam imenso o processo. Qualquer um,
no recato do lar e sem despesas, está habilitado a despejar fúria em cima de
quem lhe apetecer. Embora com resultados duvidosos, é a terapia ocupacional em
voga.
Em terceiro lugar, há a circunstância de o
Henrique não ser de esquerda, deformidade que, em Portugal, consubstancia desde
logo um delito ou dois. Questionar a perfeição ética do eleitorado
"natural" do PCP acrescenta três ou quatro. Ser, para cúmulo, editado
"pelo" Pingo Doce, remata o cadastro e define um
"fascista". Por experiência própria, sei que muitos
"anti-fascistas" lidam um bocadinho mal com o contraditório e
defendem o castigo sumário dos canalhas que o arriscam. Como os aparelhos
ortodônticos, a tolerância é um penduricalho - bem bonito - que essa rapaziada
usa na boca.
Por fim, há o "contexto" actual,
que se não me engano favorece os instintos inquisitoriais. Se as recorrentes
raivas da extrema-esquerda jamais precisaram de pedir licença aos titulares do
regime, quando a extrema-esquerda é oficiosa e oficialmente o regime a raiva
será praticamente obrigatória. E, daqui em diante, quase ininterrupta. É
esperar para ver - e calar, na certeza de que a desilusão que o Alentejo
suscitou no Henrique só afectará os iludidos pelo país inteiro.
terça-feira, 1 de Março
Os parodiantes de Lisboa
É natural que, perante a extraordinária
trupe cómica que alguns confundem com um governo, cada espectador tenha os seus
favoritismos. Os tradicionalistas, por exemplo, preferem as anedotas brejeiras
do dr. Costa, que para cúmulo se ri enquanto as conta. Os adeptos da comédia do
embaraço optam pelo dr. Centeno, um Ricky Gervais de segunda apanha. As
crianças deleitam-se com o humor físico do filho de Mário Soares, excessivo
para as sensibilidades finas. E há os seguidores fiéis do nonsense do ministro
da Educação (que arrasta o estilo desde Cambridge, como metade dos Monty
Python), os fãs incondicionais do ministro do Ensino Superior (a rábula
"Tenhemos Humildade" é já um clássico) e os devotos do dr. Santos
Silva (velho mestre da piada involuntária). A mim, porém, quem me tira o
discreto surrealismo do ministro da Economia tira-me tudo.
O homem abre a boca e, com a sisudez de
Buster Keaton, as graças saem umas atrás das outras - e às vezes à frente: os
níveis de fiscalidade não dissuadem o investimento estrangeiro; o aumento do
preço dos combustíveis não prejudicará o sector do calçado; o Orçamento de
Estado cria confiança. E a mais recente: as famílias com filhos evitam os
restaurantes para não maçar os restantes clientes. Na semana que vem, o dr.
Caldeira Cabral garantirá que o povo só não se desloca de helicóptero por causa
das vertigens. É uma pena que a galhofa decorra à custa da nossa falência.
Ainda assim, é um preço justo.
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