ERNESTO LARA FILHO |
Para mim, domingo de
Angola é paraíso. É um Céu. Colorido. É moamba de peixe ou caril de galinha de
Quilengues. Domingo de Angola não tem rival no mundo. Começa na praia e acaba
na sesta. Não tem Sporting-Benfica, nem linha de Sintra, não tem passeio a Vila
Franca. Não tem touros, nem Cacilhas, nem caracóis no Ginjal. Domingo de
Angola, para mim, é o melhor domingo do mundo que eu conheço – e que já não é
nada pequeno, benza-o Deus.
Moamba para mim é um
ritual. Tem pirão de fuba de mandioca – que eu sou do Sul, usa-se de milho, mas
eu prefiro de mandioca à moda do Norte, à moda de Malanje, tal qual no Uíje –
mete farinha de pau e obrigado velha que está uma delícia. Tem de ser comido à
sombra de um palmeira ou coqueiro, debaixo de uma mandioqueira ou mangueira
quando é no interior. Porque coqueiro só no litoral. É por estas e por outras
que eu gosto do domingo em Angola. Domingo de Branco. Domingo de Preto. Domingo
de todos, domingo de missa, de padre, de domingo.
A verdadeira moambada,
aquela que é feita de galinha tenra, tão tenra que sabe a peito de virgem, a
moamba verdadeira, tem de ser do cacho primeiro da palmeira do quintal. O molho
será apurado pelo velho cozinheiro, que foi mestre dos pais, dos filhos e dos
filhos dos filhos. Tem molho que é de “come e arrebenta e o que sobra vai no
mar” como dizia o poeta patrício e mulato Viriato da Cruz, no “Sô Santo”.
Moamba verdadeira, repito, só se come duas ou três vezes na vida. É preciso
estar-se em estado de graça. Estar-se com Nosso Senhor e com os anjos.
Moamba para mim, é
saudade, hoje que estou longe, hoje que estou perto. Estou perto de estar tão
longe. Não compreendem leitores? A gente está longe e tem saudades. Antes de
adormecer, pela noite, vem a lembrança, da pitangueira do quintal, da Rosa
Lavadeira, do amo-seco Canivete que falava “axim” à moda de Viseu, e tudo isso
aparece nítido, cada vez mais claro e puro como certas horas da madrugada da
Serra do Lépi. A primeira vez que comi moamba, dela me lembro como da primeira
vez que beijei mulher, do primeiro desafio de futebol, do primeiro amor
nocturno na areia da praia, com mulher de verdade. A primeira moamba, lembra-se
como se lembra a primeira ida à escola.
O travo nativo do
cacho de déndém, que leva meses a fazer-se, até os frutos terem a tonalidade da
queimada. Metade o clarão no céu da noite, a outra metade, escuro, um escuro de
breu. Tudo isso o sabor tropical junta naquele fruto, que tem brisa do mar, sol
de praia, frescura de casuarina, amor de mulata. O coconote e as influências
indianas nadando no molho. Tem jindungo, a moamba genuína, aquela que cheira a
sândalo, que escorre do canto da boca, do patrício apaixonado, de olho rútilo e
lábio trémulo. Mas a galinha, essa tem de ser de Quilengues, magra e criada no
mato, quase sem penas, galinha de sanzala, galinha de preto, que é como quem
diz, de pobre. Isto está divinal, velha, eu um dia volto. Se entra a erva-doce,
zumba que zumba e farinha de pau, oh, céus, oh, Mãe, isto não é moamba, isto é
poesia. Literatura.
Mas tem de ser comida
no terreiro da casa de adobe do bairro velho. Tem de ser comida em ritual, na
casa de adobe com telhado de zinco da estrada da escola da Liga, ou num dos
Muceques de Luanda, por sobre as areias avermelhadas do Prenda ou do Burity.
Depois a altura do
peito de mulher na moleza da carne ou do peixe. Se é “roncador”, aka, é peixe
da costa e sabe que sabe tão bem. Mas de galinha é melhor. Galinha de
Quilengues escanifrada, repito. Galinha de pobre.
Fico por momentos em
êxtase, as mãos sobre o estômago, lembrando o terreiro da família Gamboa lá de
Luanda onde comi uma coisa dessas uma vez há muitos anos. Num bairro velho de
Benguela, eu estarei ainda um dia com meus companheiros dos tempos de eu
menino, comendo moamba e bebendo quissângua à sombra do bambu do Edelfride – na
casa do Edelfride.
Moamba é riqueza de
pobre e fraqueza de rico. Entra em palácios sem pedir licença, com o mesmo à
vontade com que se senta nos quintais com sombra de mangueira e entra em
terrina de esmalte, prato de esmalte, caneca de esmalte, garfo de alumínio.
Velho sonho de poeta, lembrança de castimbala, moambada para mim é saudade e
sonho, recordação e batuque, história de amor.
Um dia, quando eu
voltar, hei-de comer uma moambada de peixe ou de carne, à sombra de um cajueiro,
num Muceque de Luanda, moamba do cacho primeiro da palmeira do quintal, não é
velha? Depois de muito beber dormirei a sesta. E hei-de gostar de ouvir um
desses rapazes do meu tempo, feito velho de cabelos brancos, recitar baixinho
enquanto adormeço, a balada do Viriato:
“… Kitoto e batuque pró povo lá fora champanha, ngaieta
tocando lá dentro…
Garganta cantando:
“Come e arrebenta
E o que sobra vai no mar…”
Para mim, domingo de
Angola é isso tudo. Um Céu colorido. Uma moamba de peixe. Uma noite de luar.
… não tem
Sporting-Benfica, não tem touros, nem caracóis no Ginjal…
Ernesto Lara Filho, in
Jornal de Notícias, 1957
Enviado por João Manuel
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