terça-feira, 19 de janeiro de 2016

Lagoaça, minha terra adoptiva

 Tempo Caminhado: “Lagoaça”
António de Almeida Santos faleceu hoje. Foi um politico de rara inteligência, a quem só a História poderá julgar. Como homem foi uma pessoa decente e como alguém dedicado à  escrita, um dos raros prosadores que conhecia a língua pátria como muito poucos. É dele o texto que se segue, escrito para uma colectânea de autores transmontanos, editada em 2010/2011.

António de Almeida Santos
O meu primeiro contacto com Trás-os-Montes foi no quinto ano do Liceu, em que frequentei, para fazer companhia a um tio casado com uma irmã de minha mãe, professora colocada em localidade distante, e que no Liceu Latino Coelho leccionava matemática.
Gostei do que vi. Trás-os-Montes, com algumas similitudes à minha região da Serra da Estrela, revelou-se-me uma Província genuína e forte, personalizada.
Visitei então as mais importantes povoações da região a jogar voleibol, desporto de que era vedeta, e lancei esse desporto no Liceu de Lamego, o qual pegou de raiz a nível escolar, na região.
Mais tarde, já na Universidade, como membro do Orfeão Académico e da Tuna da Universidade, visitei de novo cidades transmontanas, a tocar guitarra, a cantar e a fazer discursos. Era o orador oficial daqueles organismos.
Revi terras que já conhecia desde o tempo de Lamego, conheci outras e pude confirmar a genuinidade e a verticalidade do povo transmontano, tão parecido com as gentes da minha Serra da Estrela. Foi assim que várias vezes revi Amarante, e aí conheci e fiquei a admirar o grande Teixeira de Pascoais, que sempre nos saudava com discursos brilhantes, a que eu tinha de toscamente responder.


Mas mal eu sabia que viria a ter com Trás-os-Montes uma ligação mais profunda e mais sólida. A ligação pelo matrimónio. No quinto ano do meu curso de direito apaixonei-me por uma colega que viria a ser minha mulher, e mãe dos nossos cinco filhos. Ela entroncava, pela ascendência familiar em duas terras de Trás-os-Montes. Pelo avô paterno que eu vim a conhecer em Carrazeda de Ansiães, terra que visitei algumas vezes enquanto o avô foi vivo, e pelos avós maternos, em Lagoaça, onde o avô tinha sido professor, e vivia, com a sua encantadora esposa, os últimos anos da sua vida. Personalidades, todas elas, curiosíssimas, a que não faltava notabilidade local. O professor Moreno, avô materno de minha mulher, além de ter sido um brilhante pedagogo, tinha o hábito de escrever em verso, à neta, quando ela estudava em Coimbra. Uma selecção desses versos acabou por ser publicada pela neta, com inteira justificação. Ele era mesmo um poeta espontâneo com a poesia na alma.
E foi assim que, pelo casamento, eu vim a ficar para sempre ligado à região que Torga qualificou de “reino maravilhoso”. E sem ter atingido os inatingíveis píncaros da transmontaneidade do meu saudoso amigo Miguel Torga, vi crescer, com o passar dos anos, a minha admiração e o meu afecto por Trás-os-Montes – o mais genuíno Portugal. E particularmente por Lagoaça, onde eu e minha mulher viríamos a investir as nossas modestas economias para ampliar e modernizar o edifício de bela traça que seus pais nos legaram.
Infelizmente, as minhas ocupações têm-me obrigado a espaçar e restringir os períodos que ali passámos. Mas a primeira quinzena de Agosto é sempre ali que a temos passado.
Lagoaça é uma aldeia muito antiga, separada de Castela a Velha pelo majestático rio Douro. Acolheu, quando foi tempo disso, altas doses de inteligência judaica, quando o Rei D. Manuel, empenhado em casar com a filha dos reis de Espanha, resolveu copiar o país vizinho, expulsando os judeus. Expulsou então o melhor da inteligência nacional desse então. O remédio dos expulsos que resistiram a deixar Portugal foi a rara conversão ao catolicismo e o refúgio nas regiões menos acessíveis do território nacional. No topo do “canapé” português, como lhe chamou o rei D. JoãoVI, por detrás de montanhas difíceis de transpor, estava Lagoaça, pronta a recebê-los e a deixar-se marcar pela inteligência recebida. Até bem tarde, quando morria um idoso, era frequente surpreender em arcas seculares os sinais da prática do rito judaico. Lagoaça deve orgulhar-se de ter contribuído para minorar o sofrimento das vítimas de uma das medidas políticas mais desastradas e desumanas da história portuguesa. Houve o contrapeso de outras, felizmente.
Foi para mim um privilégio ter ficado ligado pelo casamento, e depois pela afectividade, a Trás-os-Montes e a uma das terras que mais tipicamente ilustram esse “reino maravilhoso”.
Parte substancial dos livros que publiquei, foi escrita lá. Longe do bulício do Mundo; respirando o ar puro da sua altitude; e bebendo o vinho delicioso da nossa própria quinta, aquele éden inspira-me.

                                         ANTÓNIO ALMEIDA SANTOS
in: Trás-os-Montes e Alto Douroo, Mosaico de Ciência e Cultura, Exoterra, 2011.


António de Almeida Santos Nasceu em Cabeça (Seia), em 1926. Mas como segunda opção fez de Lagoaça a sua terra (de onde é originária a sua esposa). Formado em Direito, no ano de 1950 publica Coimbra em África. Em 1953 fixa-se em Moçambique. Aí exerce advocacia até 1974, demonstrando empatia com os “Democratas de Moçambique”. Envolve-se na campanha de Humberto Delgado e em 1974 regressa a Portugal. Desenvolveu uma intensa actividade politica como deputado do Partido Socialista, desempenhando funções como as de Ministro (várias vezes) e Presidente da Assembleia da República. Colaborou na revisão constitucional de 1982. Escreveu várias obras jurídicas e históricas como “Quinze meses ao serviço da descolonização” (1998) e “Quase Retratos (1999). Foi ficcionista. Na juventude escreveu “Rã no Pântano”. Possui uma obra publicada vasta, que ultrapassa os 25 títulos.


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